Durante as últimas três décadas, os debates climáticos internacionais fracassaram em conectar elementos que, na prática, existem como um único sistema: clima, solo, rios, oceanos e as próprias pessoas que dependem deles. A análise fragmentada desses componentes, segundo Patrícia Suárez, integrante da Fundação Gaia Amazonas, ajudou a agravar os impactos das mudanças climáticas e dificultou a construção de respostas capazes de enxergar a Terra como um organismo interligado. Representante de 64 comunidades indígenas e membro do Instituto Interamericano de Pesquisa sobre Mudanças Globais, Suárez defendeu, na COP30, que a integração entre ciência moderna e conhecimento tradicional não é apenas desejável, mas uma condição básica para compreender o que está acontecendo com os oceanos e suas relações com a Amazônia.
Sua fala ocorreu em um painel realizado no Pavilhão do Oceano, promovido pelo Programa FAPESP para o Oceano Atlântico Sul e Antártica (PROASA), que reuniu especialistas de instituições globais para discutir como avançar a ciência oceânica num mundo em rápida transformação climática. Suárez lembrou que á água que alimenta a Amazônia nasce no oceano, percorre as florestas, se infiltra no solo e retorna para o mar em um ciclo contínuo. É por isso que, para ela, proteger os oceanos envolve entender também os territórios onde os povos indígenas vivem e atuam como guardiões. Eles observam o ambiente diariamente, compreendem suas dinâmicas e cultivam uma convivência que, quando interrompida, produz consequências desastrosas.
Essa interdependência entre os sistemas naturais e culturais foi reforçada por Alexander Turra, professor do Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo e coordenador do PROASA. Turra avaliou que a própria ciência é parcialmente responsável pela visão fragmentada do oceano. Pesquisadores, afirma ele, muitas vezes trabalham em compartimentos estanques, comunicam-se de maneira restrita e constroem dados e análises que não dialogam adequadamente com outros campos. Para construir políticas eficazes, é essencial reconhecer os limites dessa abordagem e avançar para práticas científicas que reúnam múltiplos sistemas de conhecimento, incluindo o tradicional.
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No PROASA, essa mudança já começou. As pesquisas apoiadas pelo programa têm sido estruturadas a partir de processos de construção conjunta com comunidades tradicionais, valorizando metodologias que integram informação científica, observação local e narrativas de povos e comunidades costeiras. Turra argumenta que essa interligação não é apenas um gesto político, mas um caminho metodológico necessário para compreender um oceano submetido a pressões simultâneas e interdependentes, como acidificação, aumento da temperatura, colapso de estoques pesqueiros e perda de biodiversidade.
A urgência de uma ciência transdisciplinar foi destacada também por Megha Sud, diretora científica do Conselho Internacional de Ciência (ISC). Sud chamou atenção para o fato de que os oceanos, da mesma forma que as florestas, são partes essenciais da regulação climática global. Enxergá-los como elementos isolados tem sido um equívoco recorrente. Segundo ela, ainda é comum que projetos oceânicos sejam concebidos como estudos pontuais ou iniciativas isoladas, que ignoram vínculos com questões sociais, políticas e ambientais. Uma ciência realmente transdisciplinar exige a definição conjunta de problemas, envolvendo comunidades locais, governos e formuladores de políticas públicas, além da cocriação de soluções.
Lorna Inniss, chefe da subcomissão regional da Comissão Oceanográfica Intergovernamental da Unesco, apresentou iniciativas que procuram traduzir essa integração científica para ações práticas. Uma delas envolve a parceria com a Rede de Observação Pesqueira, por meio da qual serão instalados instrumentos de baixo custo em barcos de pesca para coletar dados sobre o oceano. À medida que circulam pelo mar, esses barcos produzirão informações essenciais para melhorar previsões de furacões, mapear zonas de pesca e compreender padrões oceânicos ainda pouco registrados. Para isso, os pescadores serão capacitados a operar e analisar os dados coletados.
Mostrar como o oceano influencia diretamente a saúde pública também pode ampliar a compreensão social sobre sua importância, destacou Paulo Gadelha, pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Para ele, a percepção de que a crise climática pode desencadear emergências sanitárias — como proliferação de doenças, insegurança alimentar e contaminação hídrica — torna o oceano um eixo estratégico para narrativas que conectam ciência, políticas públicas e cotidiano da população. Trazer a saúde para o centro do debate pode ampliar o alcance das discussões sobre conservação marinha.
No conjunto, o painel deixou uma mensagem inequívoca: sem integrar ciência, saberes tradicionais e participação comunitária, nenhuma estratégia para proteger os oceanos será capaz de lidar com a complexidade da crise climática. Construir essa convergência, afirmaram os participantes, é a tarefa central da próxima década para quem trabalha com o oceano — e para quem vive dele.
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