CURIOSIDADES

Cobra Grande sob a Basílica de Nazaré? Entenda a origem da lenda

Dizem que, bem debaixo da Basílica Santuário de Nossa Senhora de Nazaré, em Belém, repousa uma imensa serpente, silenciosa e adormecida. Essa criatura lendária, conhecida como Cobra Grande, faria parte dos mistérios que cercam a cidade e estaria contida apenas pela força da Virgem de Nazaré, que a mantém sob controle. Para alguns, ela protege o povo paraense; para outros, pode se agitar e causar desastres, como tremores e enchentes. Essa lenda, passada de geração em geração, mistura fé, medo e fascínio, tornando-se parte essencial do imaginário popular amazônico.

Segundo o professor e pesquisador Paulo Maués Corrêa, autor de livros sobre literatura e cultura, a origem da história tem forte ligação com a tradição cristã trazida à Amazônia durante a colonização. “Ela lembra a imagem bíblica da Virgem que pisa a cabeça da serpente, presente no Apocalipse”, explica. Nesse contexto, a presença da Cobra Grande sob a Basílica simboliza a vitória do bem sobre o mal e reforça a devoção a Nossa Senhora de Nazaré, padroeira da Amazônia.

Mas a lenda não se limita à religiosidade cristã. Na tradição amazônica, a Cobra Grande aparece sob diferentes nomes, como Boiúna, Boiaçu e até Mãe d’Água, dependendo da região e do tipo de narrativa. “Embora, em tupi, esses nomes tenham significados distintos — Boiúna significa Cobra Preta, enquanto Boiaçu quer dizer Cobra Grande —, com o tempo, passaram a ser usados como sinônimos”, destaca Maués. Essa mistura de referências indígenas, caboclas e europeias revela a riqueza cultural da Amazônia e como as histórias se entrelaçam ao longo dos séculos.

A narrativa ligada à Basílica ganhou força à medida que o Círio de Nazaré se consolidou como a maior festa religiosa do Brasil. A cada ano, milhões de pessoas acompanham a procissão em homenagem à padroeira, e a lenda da Cobra Grande retorna às conversas, como parte da mística que envolve a celebração. No século XIX, já existiam registros artísticos que conectavam o mito ao Círio.

“No livro Visagens e Assombrações de Belém, o escritor Walcyr Monteiro apresenta uma verdadeira evolução da lenda”, conta Maués. “Originalmente, dizia-se que a cabeça da cobra ficava sob a Catedral da Sé, enquanto a cauda se estendia por outras igrejas, como a do Carmo e a de Santo Antônio. Com o crescimento da cidade e da devoção a Nossa Senhora, a Basílica passou a ocupar o centro dessa narrativa, refletindo seu papel na fé popular”, explica.

Saiba mais: Cobra-camelão: como e por que a Enhydris gyii muda de cor espontaneamente

Um marco importante dessa tradição é uma ilustração publicada em 1878 na revista O Puraqué, feita pelo alemão Carlos Wiegandt, pioneiro do humor gráfico no Pará. Resgatada recentemente pelo professor Vicente Salles, a imagem mostra a Cobra Grande em conexão direta com a procissão do Círio, confirmando que a história já fazia parte do imaginário coletivo de Belém há mais de um século.

A lenda também inspirou a literatura. No clássico modernista Cobra Norato (1931), o poeta Raul Bopp menciona uma serpente que, ao final do poema, entra “no cano da Sé”, permanecendo sob a proteção da Santa — uma metáfora que une o mito amazônico à religiosidade católica.

Com o passar do tempo, a forma de contar a história pouco mudou, mas a maneira como as pessoas se relacionam com ela sofreu transformações. Antigamente, havia mais respeito e até temor. Hoje, muita gente encara a lenda como um “causo”, algo curioso, mas sem a mesma carga de crença de outros tempos. Ainda assim, durante o Círio, quando a fé se manifesta intensamente, a lembrança da Cobra Grande ressurge e continua a intrigar fiéis e visitantes.

Em algumas ocasiões, fenômenos naturais foram associados à movimentação da serpente. Em janeiro de 1970, por exemplo, quando a terra tremeu em Belém, muitos atribuíram o tremor ao despertar da Cobra Grande. Embora sem explicação científica, esse tipo de interpretação mostra como a lenda está enraizada na forma como os belenenses compreendem sua cidade.

Para Maués, a narrativa representa a complexidade da identidade amazônica. “Embora exista a influência europeia da imagem bíblica da Virgem pisando a serpente, a lenda carrega elementos indígenas e caboclos. É um sincretismo que une diferentes tradições e crenças, criando algo único e profundamente enraizado na cultura da região”, analisa.

Assim, a história da Cobra Grande sob a Basílica de Nazaré continua viva. Seja contada em voz baixa por avós, retratada em livros e ilustrações ou lembrada durante a maior procissão religiosa do país, ela permanece como símbolo da Amazônia: misteriosa, poderosa e sempre pronta a despertar a imaginação de quem a ouve.

Por Eva Pires

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