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Revolução verde nos céus, enzima brasileira transforma resíduo em biocombustível de aviação

Em uma descoberta que promete revolucionar a indústria de biocombustíveis e a aviação sustentável, pesquisadores brasileiros do Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM) identificaram uma enzima capaz de eficientemente o óleo de destilação do etanol de milho (DCO) em biocombustível para aviação. Este avanço, publicado na prestigiosa revista Nature Communications, não apenas oferece uma solução para o aproveitamento de um subproduto industrial até então subutilizado, mas também abre caminho para uma nova era de combustíveis renováveis de alta performance. 

A Descoberta: OleTPRN – A Enzima Transformadora

A enzima, batizada de OleTPRN, pertence à família das desidrogenases e demonstrou uma capacidade notável de catalisar a descarboxilação oxidativa de ácidos graxos presentes no DCO. Este processo resulta na produção de alcenos (hidrocarbonetos insaturados) e CO₂, criando moléculas quimicamente similares àquelas encontradas em combustíveis fósseis refinados.

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Características Técnicas da OleTPRN:

  1. Termoestabilidade: Mantém atividade catalítica eficiente a temperaturas de até 70°C, compatível com processos industriais.
  2. Tolerância a pH ácido: Opera de forma ideal em ambientes com pH entre 4 e 6, adequando-se perfeitamente às características do DCO bruto.
  3. Alta seletividade: Produz predominantemente α-olefinas (C16:1 e C18:1), precursores ideais para a produção de bioquerosene.
  4. Eficiência de conversão: Alcança rendimentos superiores a 80% em condições otimizadas de laboratório.

O Substrato: DCO – De Resíduo a Recurso Estratégico

O óleo de destilação do etanol de milho (DCO) é um subproduto da crescente indústria de etanol de milho no Brasil. Em 2023, a produção nacional atingiu 145.700 toneladas, um volume significativo que, até agora, era principalmente direcionado para a produção de ração animal ou biodiesel de primeira geração.

Composição e Desafios do DCO:

  • Alto teor de ácidos graxos livres (FFA): Até 15%
  • Presença de fosfolipídios e contaminantes como micotoxinas
  • Acidez elevada: pH típico entre 4 e 5

Estas características tornavam o DCO um substrato desafiador para processos convencionais de produção de biocombustíveis, que geralmente requerem óleos refinados e neutros.

Vantagens do Processo Enzimático

A utilização da OleTPRN para o processamento do DCO oferece várias vantagens sobre métodos tradicionais:

  1. Eliminação de pré-tratamentos: A capacidade da enzima de operar diretamente no DCO bruto reduz custos e complexidade do processo.
  2. Redução no consumo de hidrogênio: Comparado ao hidroprocessamento (HVO), o processo enzimático requer significativamente menos hidrogênio.
  3. Seletividade melhorada: A produção preferencial de α-olefinas evita a formação de parafinas lineares, indesejadas no combustível de aviação.
  4. Captura de CO₂ biogênico: O CO₂ liberado durante a reação pode ser capturado e utilizado, contribuindo para a neutralidade de carbono do processo.

Impacto Econômico e Ambiental

Potencial Econômico:

Estimativas do CNPEM sugerem que a integração da tecnologia OleTPRN em biorrefinarias existentes pode adicionar entre US$ 200 e US$ 300 por tonelada ao valor do DCO. Considerando a produção brasileira de 2023, isso representa um potencial de receita adicional de aproximadamente US$ 43,7 milhões para a indústria.

Redução de Emissões:

Análises de ciclo de vida conduzidas pelo Laboratório Nacional de Biorrenováveis (LNBR) indicam que o bioquerosene derivado de DCO via OleTPRN pode reduzir as emissões de CO₂ equivalente em 75-85% comparado ao querosene fóssil. Para cada tonelada de DCO processada, evita-se a emissão de aproximadamente 2,8 toneladas de CO₂.Em escala nacional, considerando o volume atual de produção de DCO, o potencial de mitigação de emissões chega a 408.000 toneladas de CO₂ por ano – equivalente a retirar 88.000 carros de circulação.

Desafios e Próximos Passos

Escalonamento Industrial:

O principal desafio agora é escalonar a produção da OleTPRN para níveis industriais. Isso envolve:

  1. Otimização de processos fermentativos para produção em larga escala da enzima
  2. Desenvolvimento de sistemas de imobilização enzimática para aumentar a estabilidade e reutilização
  3. Integração do processo em biorrefinarias existentes

Pesquisa e Desenvolvimento Contínuos:

Equipes do CNPEM estão trabalhando em várias frentes para aprimorar ainda mais a tecnologia:

  1. Engenharia de proteínas: Modificação da OleTPRN para aceitar ácidos graxos de cadeia mais longa (C20-C24), ampliando o espectro de aplicações.
  2. Biologia sintética: Desenvolvimento de microrganismos capazes de produzir a enzima in situ, simplificando o processo produtivo.
  3. Catálise em cascata: Combinação da OleTPRN com outras enzimas para produção direta de hidrocarbonetos saturados, eliminando a necessidade de hidrogenação posterior.

Contexto Global e Oportunidades para o Brasil

O desenvolvimento da OleTPRN posiciona o Brasil na vanguarda da pesquisa em biocombustíveis avançados. Com a crescente demanda global por combustíveis de aviação sustentáveis (SAF), impulsionada por regulamentações como o ReFuelEU Aviation na União Europeia, que exige a incorporação de 6% de SAF até 2030, o país tem a oportunidade de se tornar um líder na exportação desta tecnologia e dos biocombustíveis resultantes.

Enzima OleTPRN

Vantagens Competitivas do Brasil:

  1. Matéria-prima abundante: A produção crescente de etanol de milho garante um suprimento estável de DCO.
  2. Infraestrutura estabelecida: A indústria de biocombustíveis já bem desenvolvida facilita a adoção de novas tecnologias.
  3. Expertise científica: A descoberta da OleTPRN demonstra a capacidade de inovação dos centros de pesquisa brasileiros.

Impactos na Cadeia de Valor do Agronegócio

A valorização do DCO através da tecnologia OleTPRN tem o potencial de reestruturar a cadeia de valor do etanol de milho:

  1. Aumento da rentabilidade: Produtores de etanol podem diversificar sua receita com um coproduto de alto valor.
  2. Incentivo à expansão: A maior lucratividade pode estimular investimentos em novas plantas de etanol de milho.
  3. Desenvolvimento regional: Regiões produtoras de milho, como o Centro-Oeste, podem se beneficiar com a instalação de biorrefinarias integradas.

Perspectivas Futuras e Aplicações Além da Aviação

Embora o foco inicial seja o bioquerosene para aviação, a versatilidade da OleTPRN abre possibilidades para outras aplicações:

Biocombustíveis Marítimos:

O setor de transporte marítimo, responsável por cerca de 3% das emissões globais de CO₂, busca alternativas sustentáveis. Os hidrocarbonetos produzidos pela OleTPRN poderiam ser adaptados para uso em motores navais, atendendo às rigorosas especificações da Organização Marítima Internacional (IMO).

Química Verde:

As α-olefinas produzidas pela enzima são valiosas matérias-primas para a indústria química, podendo ser utilizadas na produção de:

  • Detergentes biodegradáveis
  • Lubrificantes sintéticos de alta performance
  • Polímeros especiais

Bioplásticos:

A conversão enzimática do DCO pode ser direcionada para a produção de monômeros renováveis, como o etileno verde, base para a fabricação de polietileno e outros plásticos biodegradáveis.

Um Salto Quântico na Bioeconomia

A descoberta da enzima OleTPRN pelo CNPEM representa mais do que um avanço tecnológico; é um salto quântico na direção de uma bioeconomia circular e sustentável. Ao transformar um resíduo agroindustrial em um insumo estratégico para a descarbonização do setor de transportes, esta inovação brasileira exemplifica o potencial da biotecnologia para enfrentar os desafios climáticos globais.O sucesso da implementação em larga escala desta tecnologia dependerá de uma combinação de fatores:

  1. Contínuo investimento em pesquisa e desenvolvimento para otimização do processo
  2. Políticas públicas de incentivo à adoção de biocombustíveis avançados
  3. Parcerias estratégicas entre academia, indústria e governo para acelerar a transferência tecnológica

Novo paradigma na utilização de resíduos agroindustriais

Se bem-sucedida, a tecnologia OleTPRN não apenas consolidará a posição do Brasil como líder global em biocombustíveis, mas também estabelecerá um novo paradigma na utilização de resíduos agroindustriais, contribuindo significativamente para a mitigação das mudanças climáticas e para o desenvolvimento sustentável.

À medida que o mundo busca soluções urgentes para a descarbonização do setor de transportes, inovações como a OleTPRN oferecem um vislumbre de um futuro onde a aviação e outros modos de transporte possam operar em harmonia com os objetivos climáticos globais. O desafio agora é transformar esta promissora descoberta de laboratório em uma realidade industrial, pavimentando o caminho para uma nova era de mobilidade sustentável.

Redação Revista Amazônia

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