Foto: Jerzy Strzelecki
No imaginário coletivo, a Antártica é um território homogêneo, inteiramente coberto por gelo e neve. O primeiro mapeamento sistemático das áreas livres de gelo do continente, no entanto, revela uma realidade mais complexa — e também mais frágil. Segundo o estudo MapBiomas Antártica, menos de 1% da superfície antártica permanece descoberta de gelo ao longo do ano. Ainda assim, esse pequeno fragmento territorial concentra processos ecológicos decisivos para a vida no continente e para o equilíbrio climático do Hemisfério Sul.
Ao todo, são cerca de 2,4 milhões de hectares de áreas livres de gelo. Desse total, apenas 107 mil hectares apresentam cobertura vegetal durante o verão austral. É a primeira vez que esses números são medidos com precisão e consistência metodológica, oferecendo uma base científica sólida para o monitoramento ambiental da Antártica. O levantamento representa um marco para a ciência polar ao transformar áreas historicamente tratadas como marginais em objeto central de análise ecológica.
A pesquisa é fruto de uma iniciativa científica brasileira conduzida no âmbito do MapBiomas Antártica, uma extensão internacional do projeto MapBioma, reconhecido mundialmente pelo uso de sensoriamento remoto para mapear mudanças no uso e cobertura da terra. O estudo foi divulgado pela Agência Brasil, da Empresa Brasil de Comunicação – EBC, e integra as comemorações dos 30 anos da presença brasileira contínua no continente gelado.
Mapear a Antártica exige mais do que expedições em campo. O estudo foi desenvolvido a partir de imagens de satélites da missão Sentinel-2, operada pela Agência Espacial Europeia (ESA), que entrou em órbita polar com capacidade de capturar imagens de alta resolução e ampla cobertura. Essas imagens foram processadas com algoritmos de machine learning e infraestrutura de computação em nuvem, necessários para lidar com o enorme volume de dados gerados.
As análises se concentraram no período entre 2017 e 2025, mas apenas nos meses do verão austral, entre dezembro e março. Nesse intervalo, o Hemisfério Sul recebe maior incidência de luz solar e ocorre o fenômeno do “sol da meia-noite”, quando o sol permanece visível durante 24 horas. Paradoxalmente, essa condição cria sombras extensas projetadas por cadeias montanhosas, o que impõe desafios técnicos à identificação precisa das superfícies sem gelo.
Mesmo com essas limitações, os pesquisadores conseguiram identificar padrões consistentes de cobertura vegetal e mapear a extensão real das áreas livres de gelo. Segundo a pesquisadora Eliana Fonseca, coordenadora do estudo, esse avanço abre caminho para séries históricas mais robustas no futuro. Com a continuidade do monitoramento, será possível observar tendências, retrações e expansões dessas áreas, fundamentais para entender os impactos das mudanças climáticas no continente.
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Embora rarefeita, a vegetação antártica desempenha um papel ecológico desproporcional ao seu tamanho. Nas áreas livres de gelo, durante o verão, desenvolvem-se musgos, algas terrestres e pequenas gramíneas. Sobre as rochas, os líquens formam tapetes discretos, presentes tanto nas regiões costeiras quanto no interior do continente.
Essas formações vegetais funcionam como indicadores sensíveis das mudanças ambientais. Utilizando índices de sensoriamento remoto, os cientistas puderam avaliar a saúde e a densidade da vegetação, fornecendo pistas sobre a produtividade dos ecossistemas e sua resposta a variações climáticas. Além disso, essas áreas são essenciais para a fauna local: é nelas que aves e mamíferos constroem ninhos e criam seus filhotes durante os meses mais quentes.
Curiosamente, o estudo também identificou similaridades entre a vegetação antártica e ecossistemas brasileiros. Líquens, musgos e algas terrestres são classificados como crostas biológicas do solo e aparecem em biomas como a Caatinga e o Pampa, onde ajudam a proteger o solo em ambientes com poucos recursos. Já as gramíneas, consideradas plantas pioneiras, estão presentes em todos os biomas do Brasil, reforçando conexões ecológicas entre regiões aparentemente opostas do planeta.
A relevância da Antártica vai muito além de suas fronteiras geográficas. O continente exerce influência direta sobre o clima de todo o Hemisfério Sul, funcionando como um dos principais motores das frentes frias que alcançam a América do Sul. O contraste entre massas de ar frio e seco vindas do sul e o ar quente e úmido que se forma sobre o Brasil determina padrões de chuva e temperatura em grande parte do país.
Segundo Eliana Fonseca, frentes frias mais intensas podem provocar quedas de temperatura não apenas na Região Sul, mas também no Centro-Oeste e até no Norte do Brasil. Essa conexão reforça a importância de monitorar a Antártica como parte integrante do sistema climático brasileiro.
O estudo também dialoga com a presença científica do Brasil no continente, simbolizada pela Estação Antártica Comandante Ferraz, base operada no âmbito do Programa Antártico Brasileiro. A divulgação do mapeamento contou ainda com apoio da TV Brasil, ampliando o alcance público de um tema estratégico para a ciência e para a sociedade.
Para Júlia Shimbo, coordenadora científica do MapBiomas, esta é apenas a primeira etapa. As próximas coleções devem incorporar novas variáveis ambientais e envolver um número maior de cientistas internacionais, consolidando a Antártica como um território-chave para compreender o futuro climático do planeta.
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