COP 30

Quilombolas lançam NDC própria e pedem voz na política climática

Os quilombolas do Brasil assumiram o protagonismo na agenda climática global ao lançarem sua própria Contribuição Nacionalmente Determinada (NDC), uma proposta inédita que dialoga com os compromissos internacionais do país para conter o aquecimento global até 2035. A iniciativa, conduzida pela Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ), marca um divisor de águas na luta por justiça climática e reparação histórica, unindo saberes tradicionais e ciência em uma mesma estratégia.

O documento — chamado NDC Quilombola — propõe que o Estado brasileiro reconheça oficialmente os territórios quilombolas como pilares da política climática nacional. Mais do que uma reivindicação identitária, trata-se de um plano de ação que oferece metas, prazos e indicadores para fortalecer a proteção ambiental a partir dos modos de vida das comunidades negras rurais.

“Os quilombos não são apenas afetados pelas mudanças climáticas, mas parte essencial da solução”, afirmou Selma Dealdina, articuladora política da CONAQ. “Ao protegermos nossos territórios, fazemos o trabalho de mitigação e conservação que beneficia toda a sociedade.”

Os dados sustentam a afirmação. Segundo o mapeamento do MapBiomas, entre 1985 e 2022 os territórios quilombolas titulados perderam apenas 3,2% de sua vegetação nativa — menos da metade do registrado em áreas privadas, onde o desmatamento chegou a 17%. Essa diferença mostra que a titulação dos quilombos é uma das políticas climáticas mais eficientes e baratas do país.

Foto: Ana Flávia Barbosa

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A NDC Quilombola também se conecta aos avanços internacionais promovidos pela Organização das Nações Unidas (ONU), como o reconhecimento dos afrodescendentes nas convenções da Diversidade Biológica (CDB) e da Mudança do Clima (UNFCCC). Esses marcos, argumenta a CONAQ, abrem espaço para que as comunidades negras tenham acesso direto a financiamentos e voz ativa em instâncias decisivas, como a COP30, que será sediada em Belém.

Entre as principais reivindicações está a destinação de 40% dos recursos climáticos nacionais e internacionais — provenientes de fundos como o Fundo Clima, o Fundo Amazônia e o Fundo Verde para o Clima — diretamente às comunidades quilombolas. A proposta visa corrigir uma histórica exclusão dos povos tradicionais das políticas de financiamento climático.

O documento se estrutura em três eixos estratégicos. O primeiro, Ordenamento Territorial e Fundiário, prevê titular 44 territórios até 2026 e 536 até 2030, assegurando segurança jurídica e manutenção de cerca de 1 bilhão de toneladas de carbono estocadas. O segundo, Transição Energética Justa e Consulta Prévia, exige que as comunidades sejam consultadas em mais de 1.300 projetos de mineração e infraestrutura, conforme a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Já o terceiro eixo, Desenvolvimento Sustentável com Justiça Social, Racial e Climática, defende políticas de adaptação, restauração florestal e fortalecimento da Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental Quilombola (PNGTAQ).

Para Milene Maia, coordenadora do Programa de Política e Direito Socioambiental do Instituto Socioambiental (ISA), o documento é uma resposta contundente ao racismo ambiental no país. “A sobreposição de uma terra indígena, quilombola ou unidade de conservação sem diálogo é racismo. A forma como o Estado atua nesses territórios também é. A NDC Quilombola torna visível o que sempre foi invisibilizado: a contribuição desses povos para a manutenção da floresta e do clima.”

Ao projetar uma agenda climática com raízes na ancestralidade, os quilombolas transformam resistência em política pública e memória em futuro. A NDC Quilombola não é apenas uma proposta técnica — é um chamado para que o Brasil reconheça a força de quem sempre protegeu o território antes mesmo de haver conferências, fundos e metas globais.

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