Economia

Como a perda de biodiversidade aumenta o risco de novas pandemias

A relação entre a perda de biodiversidade e o risco crescente de novas pandemias ganhou destaque no primeiro dia da Escola Interdisciplinar FAPESP: Ciências Exatas e Naturais, Engenharia e Medicina, realizada em São Paulo. Em uma conferência marcada por alertas contundentes e análises de longo alcance, a ecóloga Felicia Keesing, pesquisadora do Bard College, nos Estados Unidos, apresentou um panorama inquietante: quanto mais se degrada a natureza, mais se fortalecem as espécies que servem como reservatórios de patógenos zoonóticos, abrindo caminho para surtos potencialmente globais.

O alerta se apoia em um dado decisivo. Três quartos das doenças infecciosas emergentes são zoonóticas, ou seja, passam de animais para humanos. Mesmo assim, argumenta Keesing, a comunidade científica e os organismos internacionais continuam a adotar estratégias que, embora essenciais, têm se revelado insuficientes. A Organização Mundial da Saúde vem apostando em medidas como aprimorar a prevenção, ampliar a detecção e fortalecer respostas rápidas. Mas, diante do fracasso em prever pandemias recentes, a pesquisadora propõe ampliar o olhar, avaliando fatores ecológicos que moldam a dinâmica das doenças antes mesmo que elas apareçam.

Segundo ela, a próxima onda pandêmica pode não vir de um vírus, mas de uma bactéria resistente. Esse risco é ampliado conforme avança a perda de habitats e a redução de grandes mamíferos. Nas áreas estudadas por Keesing no Quênia, o desaparecimento de espécies como girafas e leões levou à expansão de roedores e serpentes – animais com características biológicas que os tornam mais aptos a hospedar patógenos capazes de saltar para humanos. São animais de ciclo de vida curto, reprodução intensa, resistência populacional e grande mobilidade, exatamente o oposto das espécies ameaçadas de extinção.

A pesquisadora chama atenção também para um problema metodológico: como muitas análises se baseiam em bancos de dados como o GenBank, há um viés estrutural na produção de conhecimento. Patógenos que já infectaram humanos são extremamente superestimados nos estudos, enquanto outras espécies potencialmente perigosas seguem praticamente ignoradas. Essa distorção reduz a capacidade preditiva da ciência e limita estratégias de vigilância.

Bruno Kelly/Amazônia Real/Wikimedia Commons

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Keesing propõe testar previsões antigas, revisitar modelos utilizados e ampliar os grupos de patógenos estudados, para além de coronavírus e vírus similares. Para ela, conservar e restaurar ecossistemas deve ser encarado como uma política de saúde pública, tão crucial quanto desenvolver novos medicamentos ou monitorar surtos. Biodiversidade estável funciona como uma barreira ecológica, reduzindo a presença e a circulação de animais que carregam patógenos de maior risco.

A conferência também abriu espaço para uma leitura mais ampla sobre ciência, desenvolvimento e educação. Em sua fala, Marcelo Viana, diretor do Instituto de Matemática Pura e Aplicada (Impa), mostrou como a formação em STEM (Ciência, Tecnologia, Engenharia e Matemática) transforma economias. Estudos internacionais apresentados por ele revelam a força da matemática em setores econômicos estruturantes. Viana destacou uma pesquisa realizada pelo programa Itaú Social, com apoio do IMPA, que mediu pela primeira vez o peso das profissões da área no PIB brasileiro: 4,6%, com salários 119% maiores que a média nacional. A comparação com países como França e Austrália indica um potencial gigantesco ainda não explorado.

Para reduzir esse abismo, surgiu o Impa Tech, inaugurado em 2024 no Rio de Janeiro. A instituição oferece a primeira graduação ligada ao IMPA, com foco explícito em impulsionar carreiras de alta complexidade matemática. A seleção, feita com base no desempenho em olimpíadas científicas, forma estudantes que seguem por trilhas como ciência de dados, física, matemática e computação.

No campo institucional, o evento destacou o papel decisivo da FAPESP no fortalecimento científico do Estado de São Paulo. Em sua fala de abertura, o presidente da fundação, Marco Antonio Zago, reforçou que a produção científica consistente não depende apenas de grandes investimentos, mas de estabilidade financeira contínua. Isso torna possível apoiar projetos de longo prazo, formar redes colaborativas e atrair pesquisadores de diferentes regiões e países – pilares que explicam a trajetória das Escolas Interdisciplinares, hoje celebradas como um dos espaços mais dinâmicos de intercâmbio acadêmico no Brasil.

Oswaldo Baffa Filho, da FFCLRP-USP, reforçou que o evento funciona como um laboratório vivo de interdisciplinaridade, reunindo participantes de todas as regiões brasileiras e pesquisadores internacionais. Ao lado de Baffa, também estiveram presentes lideranças como Carlos Graeff, do Conselho Técnico-Administrativo da FAPESP, Marcio de Castro, diretor científico da fundação, e Norma Reggiani, do Instituto Principia.

Do encontro emergiu uma narrativa clara: compreender pandemias futuras exige mais do que ciência médica. Exige ecologia, matemática, políticas públicas, colaboração internacional e, sobretudo, a preservação da biodiversidade. Quanto mais se destrói o tecido vivo do planeta, mais vulnerável se torna a saúde humana.

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