COP 30

Degelo do permafrost: quando microrganismos se tornam guardiões improváveis do carbono da Terra

O Permafrost é uma espécie de cápsula do tempo. Um solo congelado há milhares de anos, cobrindo vastas áreas do Hemisfério Norte – da Sibéria ao Alasca, passando pelo Ártico canadense e pelo planalto tibetano – e que guarda em suas camadas profundas restos de animais, plantas e microrganismos. Congelados, esses vestígios permaneceram inertes, como se estivessem suspensos numa pausa geológica. Mas o aquecimento global está quebrando esse feitiço do gelo. Aos poucos, e em alguns lugares de forma abrupta, o Permafrost derrete.

Essa transformação não é apenas um detalhe local. O Permafrost abriga cerca do dobro de carbono presente hoje na atmosfera. Trata-se, portanto, de um imenso reservatório capaz de determinar o rumo do clima global. À medida que o solo descongela, a matéria orgânica aprisionada começa a se decompor, liberando gases como o dióxido de carbono (CO₂) e o metano (CH₄), dois dos principais responsáveis pelo efeito estufa. Não à toa, cientistas passaram a descrever o Permafrost como uma “bomba-relógio climática” enterrada sob o gelo.

No entanto, um estudo publicado em agosto de 2025 na revista Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS) sugere que essa história talvez seja mais complexa. Liderada por Shuqi Qin e Yuanhe Yang, da Academia Chinesa de Ciências, a pesquisa indica que, em alguns cenários, o degelo pode não significar apenas liberação de carbono. Há um detalhe invisível, porém fundamental: os microrganismos do solo. Quando o gelo cede, eles não apenas despertam, como passam a usar o carbono de maneira mais eficiente. Em termos técnicos, aumentam sua “eficiência no uso do carbono” (CUE, na sigla em inglês). Em linguagem simples, em vez de devolver todo o carbono à atmosfera, uma parte significativa é retida em sua biomassa, podendo se incorporar ao solo e gerar compostos mais estáveis.

O achado não elimina os riscos do degelo, mas adiciona uma camada de nuance. Mostra que, mesmo diante da catástrofe anunciada, a vida microbiana pode desempenhar um papel inesperado de contenção – um freio parcial no escape desse carbono ancestral.

O que é, afinal, o Permafrost?

Antes de mergulhar na descoberta, é preciso entender o próprio objeto em questão. O Permafrost é definido como solo que permanece congelado por pelo menos dois anos consecutivos. Mas, na prática, muitas áreas estão congeladas há milhares de anos. Em algumas regiões do Ártico, a camada pode ter mais de 600 metros de profundidade.

Na superfície, há uma camada sazonal chamada de “camada ativa”. É nela que crescem musgos, líquens, arbustos e até florestas boreais. Essa camada descongela durante o verão e volta a congelar no inverno. Mas, logo abaixo, o Permafrost permanece estável, selando no gelo um estoque colosal de carbono orgânico.

Quando esse equilíbrio se rompe, como tem acontecido com o aumento das temperaturas médias globais, duas coisas ocorrem. Primeiro, o solo perde sua rigidez, afundando em alguns pontos e formando crateras conhecidas como termocársticos. Segundo, e mais preocupante, a matéria orgânica começa a se decompor, alimentando microrganismos que liberam gases estufa.

Permafrost – Imagem Divulgação

A investigação científica

O estudo liderado por Qin e Yang acompanhou cerca de 27 anos de mudanças no solo da Floresta Nacional do Tapajós, no planalto tibetano, e comparou essas observações com cinco outros locais afetados por colapsos de Permafrost. O objetivo era medir como a eficiência de uso do carbono pelos microrganismos se comporta diante do degelo.

Para isso, utilizaram uma técnica inovadora chamada “traçagem com isótopos de oxigênio-18”, que permite rastrear como os microrganismos absorvem e utilizam carbono em diferentes camadas do solo.

O resultado foi consistente: nos dez primeiros centímetros de profundidade, a eficiência de uso do carbono aumentou de forma significativa após o colapso do Permafrost. Isso significa que, em vez de liberar rapidamente o carbono em forma de CO₂, os microrganismos estavam incorporando mais desse material em sua biomassa.

A explicação envolve três fatores principais:

  1. Um aumento relativo na biomassa de fungos em comparação às bactérias. Fungos tendem a decompor matéria orgânica de forma mais eficiente e a reter carbono em sua estrutura celular.
  2. O crescimento de microrganismos chamados de “copiótrofos” – espécies que prosperam em ambientes ricos em nutrientes e que conseguem converter rapidamente carbono em novas células.
  3. O aumento da disponibilidade de fósforo no solo, um nutriente essencial que acelera o metabolismo microbiano.

A engrenagem invisível do solo

Pode parecer um detalhe microscópico, mas essa dinâmica é crucial para o equilíbrio do planeta. Os solos do mundo inteiro contêm três vezes mais carbono do que a atmosfera. Quem decide o destino desse carbono são, em grande medida, os microrganismos.

Funciona como uma balança: se a atividade microbiana prioriza a respiração, o carbono volta ao ar em forma de CO₂. Se, ao contrário, prioriza o crescimento celular, parte desse carbono fica “aprisionada” em compostos mais estáveis, que podem se acumular no solo por décadas ou séculos.

Ao mostrar que o degelo abrupto pode aumentar a eficiência desse uso, o estudo sugere que há mecanismos naturais de reciclagem atuando onde antes só se via risco. Mas isso não significa que estamos diante de uma boa notícia definitiva.

As limitações do freio microbiano

O aumento da eficiência do carbono no solo não é suficiente para anular os impactos do degelo. A liberação de metano em áreas inundadas, por exemplo, continua sendo uma ameaça grave, já que esse gás tem um poder de aquecimento mais de 80 vezes maior do que o CO₂ em um período de 20 anos.

Além disso, o efeito identificado pode ser temporário. À medida que o solo segue derretendo e a matéria orgânica antiga é exposta em maior volume, os microrganismos podem não conseguir manter a mesma taxa de incorporação.

O próprio estudo destaca que essa é apenas uma peça do quebra-cabeça. Modelos climáticos precisam incorporar não apenas o aumento da eficiência microbiana, mas também outras variáveis – como a hidrologia do solo, a liberação de metano e as mudanças na vegetação.

Um desafio para a ciência do clima

Até hoje, muitos modelos de previsão climática tratam o Permafrost como uma “caixa preta”: sabe-se que ele guarda carbono e que, ao derreter, libera gases. Mas as nuances da microbiologia, fundamentais nesse processo, ainda não são representadas de forma detalhada.

Esse é um problema, porque sem essa incorporação, as previsões podem ser mais pessimistas ou otimistas do que deveriam. O estudo de Qin e Yang reforça a necessidade de incluir métricas como a eficiência do uso do carbono microbiano (CUE) nos modelos globais.

Isso exigirá um esforço interdisciplinar, unindo climatologistas, ecólogos, microbiologistas e modeladores computacionais. Afinal, como o próprio artigo enfatiza, o destino do carbono do Permafrost é, em última instância, decidido por organismos invisíveis a olho nu.

A política do gelo

A discussão sobre o Permafrost não é apenas científica. É também política. A Rússia, por exemplo, concentra 65% de todo o Permafrost do planeta. As cidades construídas sobre ele já enfrentam rachaduras em edifícios, estradas e oleodutos devido ao afundamento do solo. O derretimento ameaça não só o clima, mas também a infraestrutura e a economia locais.

No Canadá e no Alasca, comunidades indígenas relatam mudanças dramáticas em seus territórios: rios que mudam de curso, lagos que desaparecem, caça que se desloca. Para essas populações, o Permafrost não é um conceito abstrato, mas parte de seu cotidiano.

Nesse cenário, estudos como o publicado na PNAS oferecem subsídios não apenas para a ciência, mas para a diplomacia climática. Eles mostram que o problema é mais complexo do que uma equação simples de carbono que sai ou fica. E que, portanto, qualquer tentativa de resposta precisa ser igualmente sofisticada.

Entre a ameaça e a esperança

O degelo do Permafrost continua sendo uma das maiores incertezas do futuro climático da Terra. O estudo de Qin e Yang não muda esse fato, mas ajuda a refinar a compreensão. Ao revelar que microrganismos podem aumentar sua eficiência e reter parte do carbono, ele abre espaço para estratégias que valorizem esses mecanismos de contenção natural.

Isso não significa que podemos contar com eles como solução mágica. Mas reforça a ideia de que a natureza, mesmo em seus processos mais invisíveis, carrega caminhos de resiliência.

A mensagem final talvez seja essa: a Terra não é apenas vítima da mudança climática, mas também uma protagonista que reage, ajusta e responde. Cabe à humanidade observar, aprender e, sobretudo, não desperdiçar a chance de agir para que essas respostas naturais tenham tempo de acontecer.

veja também: Degelo do Permafrost Ártico desencadeará uma bomba de mercúrio devido ao aquecimento global

 

 

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