Saúde

Pesquisa resgata práticas médicas sustentáveis da ancestralidade indígena

Um estudo inovador, conduzido pelo etnobotânico indígena Hemerson Dantas dos Santos Pataxó Hãhãhãi, resgatou os saberes médicos tradicionais do seu povo, os Pataxó Hã-Hã-Hãi.

Ciência com raízes ancestrais

Atualmente doutorando no Instituto de Ciências Ambientais, Químicas e Farmacêuticas da Unifesp, Pataxó Hãhãhãi é considerado o primeiro pesquisador etnobotânico indígena do mundo, segundo sua orientadora, Eliana Rodrigues.

Pataxó Hãhãhãi durante trabalho de pesquisa – Imagem: Hemerson Dantas dos Santos Pataxó Hãhãhãi

O artigo que apresenta os resultados da pesquisa foi publicado no periódico Journal of Ethnobiology and Ethnomedicine. Para o pesquisador, a importância do estudo ultrapassa os limites acadêmicos: “Foi um trabalho feito por nós e para nós. Um resgate do que estava se perdendo, mostrando que é possível fazer ciência sem abandonar a identidade indígena”.

Plantas contra doenças e apagamentos

A pesquisa partiu de demandas reais da comunidade, como a busca por tratamentos naturais para verminoses, diabetes e hipertensão, enfermidades agravadas pela perda territorial, pelo contato forçado com a sociedade envolvente e pela deterioração das condições de vida. Ao longo da investigação, Pataxó Hãhãhãi catalogou 175 espécies vegetais utilizadas com fins medicinais. Dessas, 43 são indicadas especificamente para as três doenças mencionadas, e 79% apresentam respaldo na literatura científica.

Um dos achados mais relevantes foi que a maioria das plantas utilizadas hoje são espécies exóticas, como o capim-cidreira e a moringa, ambas introduzidas no Brasil em tempos coloniais. Isso revela o impacto da devastação ambiental e do deslocamento forçado. “Muitas plantas mencionadas pelos anciãos simplesmente desapareceram da mata”, lamenta o pesquisador.

Exemplares de plantas secas armazenadas em herbários na Universidade Estadual de Santa Cruz – Imagem: Hemerson Dantas dos Santos Pataxó Hãhãhãi

Saberes ameaçados e resistência cultural

O território Pataxó Hã-Hã-Hãi, localizado no sul da Bahia, foi palco de violências históricas, com grilagem, expulsão de indígenas e perda de referências culturais. Embora o STF tenha reconhecido em 2012 o direito do povo à posse tradicional da terra, os conflitos persistem, incluindo episódios recentes de violência.

Com a extinção da língua originária em 1992 e a imposição de religiões externas, práticas como a pajelança se perderam ou foram transformadas. Mesmo assim, ainda há memória viva entre os anciãos. “Durante o trabalho, ouvi muitos relatos de curas feitas com plantas e orações que hoje são substituídas por salmos ou passagens bíblicas”, relata Pataxó Hãhãhãi.

A pesquisa entrevistou 19 especialistas indígenas com profundo conhecimento das práticas tradicionais, a maioria com mais de 60 anos. Entre eles, destaca-se Dona Marta Xavier, reconhecida por seu dom de cura e por ter atuado como parteira, ofício essencial antes do acesso a hospitais.

Conhecimento tradicional com protagonismo indígena

O estudo adotou a metodologia da “etnobotânica participativa”, desenvolvida por Eliana Rodrigues. Essa abordagem coloca os próprios povos tradicionais no centro da produção de conhecimento científico, capacitando-os para definir os rumos da pesquisa, coletar dados, analisá-los e decidir o destino do saber registrado.

Segundo Rodrigues, isso representa uma ruptura com a lógica colonial que historicamente dominou a ciência. “Se o indígena é quem coleta e registra seu conhecimento, ele também decide o que fazer com ele. Isso é essencial para a autodeterminação dos povos e para a proteção de seus direitos intelectuais”, afirma.

Um mergulho na própria história

Ao longo de mais de 240 dias de trabalho de campo, o pesquisador percorreu as dez aldeias do território, convivendo com os anciãos, registrando práticas e revivendo memórias que pertencem também à sua própria trajetória. “Foi um mergulho profundo na história do meu povo e na minha”, diz.

Como resultado, além do artigo acadêmico, o projeto gerou um livro, um material audiovisual e a implantação de canteiros de plantas medicinais. Um livreto com receitas seguras será distribuído nas aldeias, fortalecendo o uso consciente de plantas e a valorização dos saberes tradicionais entre os jovens e profissionais da saúde indígena.

Fonte: Agência FAPESP

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