Em plena atividade aos 91 anos, Anna Bella Geiger foi, e ainda é, um nome referencial da transição do moderno para o contemporâneo nas artes visuais brasileiras. Descendente de uma família que quase desapareceu na Polônia durante as trevas do holocausto, sua arte ajudou a iluminar os anos também trevosos impostos ao Brasil pela ditadura civil-militar (1964-1985).
Com formação em língua e literatura anglo-germânicas, Geiger, nascida no Rio de Janeiro em 1933, iniciou sua trajetória artística na década de 1950, como aluna no ateliê de outra artista excepcional, Fayga Ostrower. Da gravura como linguagem, e do abstracionismo informal como tendência, sua obra passou, ao longo dos anos, por várias mutações, incorporando elementos figurativos e experimentando com vários materiais (madeira, metal, terra etc.) e mídias (cartografia, fotomontagem, xerox, vídeo etc.).
Nessa produção heterogênea e heterodoxa, haveria um fio condutor: o exercício da imaginação como um ato de liberdade. Tal é a ideia central, que inclusive fornece o subtítulo, da tese de doutorado da historiadora e também artista Gabriela Barzaghi de Laurentiis: “Espacializações de Anna Bella Geiger: a imaginação é um ato de liberdade”. Orientada por Vera Maria Pallamin, e desenvolvida com Bolsa de Doutorado da FAPESP, essa pesquisa, apresentada na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), está com sua publicação no formato livro prevista para o primeiro semestre do ano que vem, pela editora Sobinfluencia.
Porém, já alimentou outras produções, como a Nota Biográfica para o catálogo da exposição “Anna Bella Geiger: Brasil Nativo/Brasil Alienígena”, organizada pelo Museu de Arte de São Paulo (Masp) em parceria com o Sesc São Paulo. E um documentário em fase de finalização, cujo trailer está disponível em: https://vimeo.com/824896352.
“Comecei a entrevistar Anna Bella Geiger em 2018. E, durante esses anos todos, conversei com ela inúmeras vezes; fiz parte, na condição de estudante, de um curso oferecido por ela; assisti a uma série de palestras e rodas de conversa com a participação dela; acompanhei a confecção e montagem de trabalhos seus; estive em sua companhia em exposições individuais e coletivas, no Brasil e no exterior. Nossos contatos incluíram conversas informais na cozinha de sua casa-ateliê, visitas que ela fez a minha casa-ateliê, refeições, compras nos mercados, telefonemas, trocas de e-mails e tantas outras formas de interação”, diz De Laurentiis.
Uma imersão dessa ordem transcende, é claro, as bitolas acadêmicas. Mas, para situar o trabalho em um contexto conceitual, é possível dizer que De Laurentiis fez uma leitura do trabalho de Geiger a partir das chaves do feminismo e de uma prática política não subordinada a cânones ideológicos ou a filiações partidárias.
“Minha pesquisa concentrou-se – não apenas, mas principalmente – no trabalho desenvolvido por ela durante o período da ditadura civil-militar, procurando entender o impacto que o regime autoritário teve sobre a subjetividade de uma artista tão livre. Importante ressaltar que a redação da minha tese ocorreu em um momento em que o autoritarismo de Estado, metamorfoseado, se atualizava no Brasil”, afirma De Laurentiis.
A pesquisadora enfatiza o compromisso de Geiger com o enfrentamento das opressões econômicas, sociais e políticas. E coloca sua obra em diálogo, no Brasil, com artistas como Anna Maria Maiolino (n. 1942), Lygia Pape (1927-2004), Lygia Clark (1920-1988) e Hélio Oiticica (1937-1980), para citar os mais conhecidos. E, no exterior, com Ana Mendieta (1948-1985), Cindy Sherman (n. 1954), Nancy Holt (1938-2014) e Robert Smithson (1938-1973), entre outros.
“Ainda no período de 1965 a 1968, época em que passa a lecionar no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, Geiger incorpora à sua gravura uma nova figuração, com as imagens de corpos fragmentados ou fragmentos de corpos que compõem a chamada ‘fase visceral’. Na década de 1970, com a participação de alunos, explora materiais como a terra e a sujeira e experimenta com novas mídias. A partir dos anos 1990, sua obra enfoca, cada vez mais, as formas cartográficas, questionando territórios e fronteiras”, resume De Laurentiis.
A imaginação criadora e os limites impostos à imaginação por meios de produção homogeneizantes, como a televisão; as interdições produzidas pelo autoritarismo, machismo e burocratismo; as relações entre o privado e o público, o pessoal e o político; o imaginário misógino brasileiro: esses são alguns dos subtemas contemplados pelos trabalhos de Geiger que De Laurentiis explora em sua pesquisa.
“No contato com Anna Bella Geiger e suas produções, notei a importância do espaço, ou dos espaços, em sua obra. Daí o termo espacializações, que se refere às ações por meio das quais a artista instaura espaços. As referências ao espaço permeiam o seu vocabulário e os títulos dos trabalhos, que, desse modo, articulam-se, em uma série de camadas, com as teorias e práticas feministas”, argumenta De Laurentiis. E lembra o vocabulário espacial que apoia algumas das principais reflexões críticas do feminismo contemporâneo, como os “saberes localizados” de Donna Haraway; o “lugar de fala”, de Lélia Gonzales e Djamila Ribeiro; e as “margens”, de bell hooks, entre outros exemplos.
Essa construção espacial feminina – se é que se pode dizer assim – estabelece um vínculo com o tema que está sendo explorado agora por De Laurentiis em sua pesquisa de pós-doutorado. Esta trata da mesa – da mesa da casa – como espaço de trabalho de quatro artistas mulheres: Anna Bella Geiger, Anna Maria Maiolino, Carrie Mae Weems e Louise Bourgeois.
“Atualmente, Gabriela realiza, sob minha supervisão, seu pós-doutorado na FAU-USP, com o projeto ‘Imaginários sobre a mesa: histórias áudio/visuais’. Esse projeto dedica-se a cartografar e criar sentidos para o objeto ‘mesa’ em criações artísticas realizadas no Brasil e nos Estados Unidos, entre 1970 e 1990. Sua perspectiva feminista singular investiga a permeabilidade entre os espaços da intimidade e os espaços públicos, no contexto do programa ‘Imaginários Urbanos’, apoiado pela FAPESP em convênio com a Université de Lyon, na França”, informa Artur Simões Rozestraten, pesquisador principal do programa e supervisor de De Laurentiis.
“Na elaboração de sua tese de doutorado, Gabriela aproximou-se de Anna Bella Geiger com a convicção metodológica de que o diálogo com a artista e a aproximação sensível aos seus processos e às suas obras constituíam um caminho incontornável para compreender suas motivações, suas poéticas e suas proposições. Esse procedimento reitera a condição relacional e afetiva como motor, tanto da ação da artista quanto da reflexão da pesquisadora sobre a artista. Gabriela enfatizou a centralidade da natureza espacial na trajetória de Anna Bella. E, a partir de sua tese, ressignificou o habitar em uma perspectiva feminista: o habitar no corpo, na casa, na cidade e no mundo”, acrescenta Rozestraten.
A tese “Espacializações de Anna Bella Geiger: a imaginação é um ato de liberdade” pode ser acessada em: www.teses.usp.br/teses/disponiveis/16/16136/tde-31032023-192002/pt-br.php. E o trailer do documentário pode ser assistido em: https://vimeo.com/824896352.