Ararinhas-azuis recapturadas testam positivo para vírus letal

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Um alerta vermelho para a reintrodução da ararinha-azul

O sonho de devolver a ararinha-azul à Caatinga brasileira sofreu um duro abalo no final de 2025. Onze indivíduos da espécie, recapturados no início de novembro após viverem em liberdade na região de Curaçá, no norte da Bahia, testaram positivo para o circovírus, agente causador da doença do bico e das penas. O diagnóstico reacende preocupações profundas sobre os riscos sanitários associados a programas de reintrodução de espécies ameaçadas e expõe fragilidades graves nos protocolos de biossegurança adotados em ambientes de manejo ex situ.

Foto: Rafael Barreto

Considerada uma das aves mais raras do planeta, a ararinha-azul depende quase integralmente de ações humanas para sua sobrevivência. Extinta na natureza no início dos anos 2000, a espécie começou a ser reintroduzida apenas em 2022, após décadas de reprodução em cativeiro no exterior. O surgimento de um vírus letal justamente nesse momento crítico coloca em xeque não apenas uma operação específica, mas a governança de todo o processo de conservação.

Um vírus sem cura e uma investigação em curso

O circovírus, originário da Austrália, afeta psitacídeos como araras, papagaios e periquitos. A doença não tem cura conhecida e é fatal na maioria dos casos, embora não represente risco para humanos nem para aves de produção comercial. A infecção provoca deformações no bico, queda de penas e imunossupressão severa, tornando os animais extremamente vulneráveis a outras enfermidades.

As 11 ararinhas infectadas faziam parte do grupo repatriado da Europa e integrado ao Criadouro para Fins Conservacionistas do Programa de Reintrodução da Ararinha-Azul, em Curaçá. Após a soltura, em 2022, esses indivíduos passaram a viver em ambiente natural, sob monitoramento contínuo. A origem da infecção ainda não foi determinada, e as investigações seguem em andamento.

Como resposta imediata, o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) determinou o isolamento rigoroso dos animais positivos e negativos, com reforço dos protocolos de biossegurança. A preocupação central é evitar a disseminação do vírus tanto entre as próprias ararinhas quanto para outras espécies de psitacídeos que habitam a região.

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Foto: Miguel Monteiro/ICMBio

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Falhas de biossegurança e multas milionárias

A situação se agravou quando vistorias realizadas pelo ICMBio, em parceria com o Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos da Bahia (Inema) e a Polícia Federal, identificaram falhas graves no criadouro responsável pelo manejo das aves. Entre as irregularidades constatadas estão limpeza inadequada das instalações e uso irregular de equipamentos de proteção individual por funcionários.

Segundo Cláudia Sacramento, coordenadora da Coordenação de Emergências Climáticas e Epizootias do ICMBio, o avanço da infecção poderia ter sido evitado. Para ela, o descumprimento de medidas básicas de biossegurança foi decisivo para que o vírus deixasse de ser um caso isolado e passasse a atingir 11 indivíduos. “Talvez não tivéssemos saído de apenas um animal positivo se os protocolos tivessem sido seguidos com o rigor necessário”, afirmou.

Como consequência, o ICMBio aplicou uma multa de aproximadamente R$ 1,8 milhão ao criadouro. O Inema já havia imposto uma sanção adicional de cerca de R$ 300 mil. Além disso, foi instaurado um Sistema de Comando de Incidente, ferramenta usada para gerir emergências ambientais e sanitárias, com o objetivo de conter a crise e proteger a fauna silvestre da região.

Conservação sob tensão: acordos rompidos e futuro incerto

O episódio ocorre em um contexto já delicado. O acordo de cooperação entre o ICMBio e a Associação para Conservação de Papagaios Ameaçados (ACTP), organização internacional que mantinha a maior população de ararinhas-azuis em cativeiro, foi encerrado em 2024. A decisão ocorreu após descumprimentos contratuais, incluindo a venda e a transferência de 26 aves para a Índia sem consentimento do governo brasileiro.

Apesar do rompimento, a ACTP ainda pode atuar no Brasil, desde que suas ações estejam alinhadas aos instrumentos oficiais de conservação coordenados pelo ICMBio. Entre eles estão o Plano de Ação Nacional para a Conservação da Ararinha-Azul, o Plano de Ação das Aves da Caatinga e o Programa de Manejo Populacional da espécie. O objetivo declarado permanece o mesmo: estabelecer uma população saudável, geneticamente viável e autossustentável em seu habitat natural.

Esse habitat inclui unidades de conservação como a Área de Proteção Ambiental (APA) da Ararinha-Azul e o Refúgio de Vida Silvestre (Revis) da Ararinha-Azul, ambos em Curaçá, na Bahia. O temor agora é que a presença do circovírus comprometa não apenas o sucesso da reintrodução, mas também a saúde de outras aves silvestres da Caatinga, um bioma já pressionado por desmatamento, mudanças climáticas e perda de biodiversidade.

O caso das ararinhas-azuis expõe um dilema central da conservação moderna: até que ponto a dependência do manejo humano, essencial para salvar espécies à beira da extinção, pode também se tornar uma fonte de novos riscos? A resposta passa por ciência, transparência e, sobretudo, rigor absoluto nos protocolos que separam a sobrevivência da extinção definitiva.