Brasília recebeu, no fim de agosto, um seminário que pode ter passado despercebido no noticiário econômico mais ruidoso, mas que guarda importância estratégica para o futuro da matriz energética nacional e para a agenda climática que o Brasil pretende apresentar ao mundo na COP30, em Belém.

Na sede da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), especialistas, lideranças do agro, representantes do governo e da iniciativa privada se reuniram para debater o papel do biogás e do biometano — duas fontes renováveis com enorme potencial de crescimento — na transição energética e na sustentabilidade do setor agropecuário.
O evento, promovido pela CNA em parceria com a Embrapa Agroenergia e a FGV Bioeconomia, foi chamado de “Seminário Agroenergia – Transição Energética Sustentável”. A pauta é urgente: como transformar os resíduos orgânicos do agro brasileiro — dejetos animais, restos de lavouras, resíduos da cana-de-açúcar, entre outros — em energia limpa, descentralizada e de baixo carbono.
E, paralelamente, em São Paulo, a Associação Brasileira do Biogás e do Biometano (ABiogás) lançou uma plataforma inédita em Power BI que reúne num só ambiente informações regulatórias, tributárias e financeiras do setor. A ideia é clara: organizar dados, dar transparência e acelerar investimentos em um segmento que cresce a dois dígitos ao ano, mas que ainda engatinha diante do potencial real do país.
O Brasil e sua matriz já “verde”
Marcelo Bertoni, presidente da Federação de Agricultura e Pecuária de Mato Grosso do Sul (Famasul), representando o presidente da CNA, abriu o seminário lembrando que o Brasil já tem uma das matrizes energéticas mais limpas do planeta: cerca de 50% de toda a energia consumida vem de fontes renováveis, enquanto a média mundial é inferior a 20%.
“Esse avanço aumenta nossa responsabilidade, mas também amplia nossas oportunidades de nos consolidarmos como referência global em transição energética e eficiência”, afirmou Bertoni.
Entre essas oportunidades, o biogás e o biometano aparecem como protagonistas. Produzidos a partir da decomposição de matéria orgânica, podem substituir combustíveis fósseis em veículos, indústrias e até mesmo na geração elétrica. No campo, significam também solução ambiental para passivos como dejetos da pecuária e resíduos agrícolas que, sem tratamento, emitem metano diretamente na atmosfera.
Transformar esse passivo em ativo é um “ganho duplo”: reduz impactos ambientais e amplia o acesso a uma fonte renovável e descentralizada de energia.

COP30 e a vitrine internacional
O seminário foi também uma espécie de preparação do setor para a COP30. A CNA deixou claro que as propostas discutidas vão compor a contribuição brasileira na conferência do clima que acontece em novembro, em Belém.
O chefe-geral da Embrapa Agroenergia, Alexandre Alonso, destacou que não é mais possível discutir sustentabilidade sem colocar a agricultura no centro. “A pauta dos biocombustíveis está colada à pauta climática. É uma alternativa muito importante para promover a descarbonização de setores inteiros, e derruba o mito de que há competição entre produção de alimentos e de energia”, afirmou.
Essa integração será um dos pontos que o Brasil pretende mostrar em Belém: como aliar segurança alimentar, produção de energia renovável e redução de emissões.
Potencial gigantesco, mas desafios reais
Na palestra magna do seminário, Tiago Santovito, diretor-executivo da ABiogás, apresentou números que dão a dimensão do potencial. Hoje, o Brasil conta com apenas 15 plantas autorizadas de biometano, produzindo cerca de 1 milhão de metros cúbicos por dia. O potencial estimado? Até 120 milhões de m³/dia — ou seja, 120 vezes mais.
Setores como o sucroenergético, a pecuária e a produção agrícola têm capacidade para expandir rapidamente, aproveitando substratos que hoje muitas vezes viram problema ambiental.
Os desafios, no entanto, são grandes: infraestrutura de distribuição, precificação, marcos regulatórios e políticas públicas ainda incipientes. “O biometano tem alto potencial de descarbonização, mas precisamos criar condições para que o setor ganhe escala”, disse Santovito.
Casos práticos no agro
Dois exemplos apresentados no evento mostram como essa agenda pode se materializar no campo.
A Primato Cooperativa Agroindustrial, em Toledo (PR), iniciou um projeto de biogás e biometano em uma granja de suínos, instalando uma indústria de fertilizantes organominerais alimentada pelo substrato coletado nas granjas. O transporte é feito por caminhões movidos ao próprio biometano produzido. O resultado? Redução de custos, corte no uso de químicos e geração de novos produtos para venda.
Já a Cocal, em Paraguaçu Paulista (SP), tradicional usina de cana-de-açúcar, desenvolveu plantas de biogás e biometano a partir da torta de filtro e da vinhaça — resíduos do processamento da cana. Hoje, a empresa já opera a primeira planta do setor sucroenergético a produzir biometano em grande escala e está construindo a segunda.
“Quando percebemos que a cana poderia produzir muito mais do que açúcar e álcool, vimos o potencial energético dessa matéria-prima”, disse André Gustavo, diretor comercial da Cocal.

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O papel da ABiogás: organizar para acelerar
Se em Brasília os debates mostraram o caminho, em São Paulo o lançamento da plataforma da ABiogás indicou o esforço para pavimentá-lo.
Segundo Renata Isfer, presidente-executiva da associação, o setor cresceu rápido — são mais de 1.600 plantas de biogás e 79 unidades de biometano em operação no Brasil — mas ainda carece de informações organizadas para apoiar decisões de investidores e formuladores de políticas públicas.
A ferramenta em Power BI reúne incentivos regulatórios, tributários e financeiros, consolida linhas de financiamento e detalha incentivos fiscais estaduais. Também mostra onde há lacunas: estados com menos políticas de incentivo, setores com baixa integração e gargalos na logística.
“Para que toda a cadeia consiga aproveitar as oportunidades, é essencial que as informações estejam organizadas e acessíveis. Essa plataforma cumpre esse papel”, afirmou Isfer.
Contexto global: energia, clima e mercado
A discussão sobre biogás e biometano não acontece em um vácuo. Está diretamente conectada às metas globais de descarbonização e às pressões do mercado internacional.
Na Europa, biometano já é parte da estratégia de transição energética e de segurança de suprimento, especialmente após a crise provocada pela guerra na Ucrânia. Nos Estados Unidos, cresce a demanda por combustíveis renováveis para transporte pesado.
No Brasil, além de reduzir emissões, o avanço do biometano pode significar maior independência energética, novas cadeias de valor no agro e um diferencial competitivo no mercado externo, onde compradores cada vez mais exigem comprovações de sustentabilidade.
O que vem pela frente
As duas iniciativas — o seminário da CNA e a plataforma da ABiogás — mostram que o biogás e o biometano estão ganhando centralidade na agenda brasileira. Mas também deixam claro que não será uma transição automática.
Será preciso vencer gargalos regulatórios, destravar financiamentos, investir em infraestrutura e garantir estabilidade para que projetos de médio e longo prazo se viabilizem.
Na COP30, o Brasil terá a chance de mostrar que o agro pode ser parte da solução climática, não apenas do problema. E o biogás e o biometano são peças-chave nesse xadrez: energia limpa, aproveitamento de resíduos e geração de valor no campo.
Como disse Alexandre Alonso, da Embrapa, “tecnologia é o fator chave para que possamos expandir a produção de biocombustíveis de maneira sustentável. Não é futuro distante: é agora”.







































