Metade das cidades brasileiras já vive em situação de alta vulnerabilidade climática. É o que revela o relatório Cidades Verdes-Azuis Resilientes, lançado pelo Centro de Síntese em Mudanças Ambientais e Climáticas (Simaclim), com base nos dados da plataforma Adapta Brasil. O levantamento mostra que 2.807 dos 5.570 municípios do país enfrentam riscos elevados diante de eventos climáticos extremos, resultado de uma combinação perigosa entre desigualdade social, falhas no planejamento urbano e fragilidade ambiental.

O documento alerta que os desastres que se repetem em diferentes regiões não se explicam apenas pela força da chuva, pelo calor extremo ou pela estiagem. Eles resultam, sobretudo, da interação entre fenômenos climáticos e territórios vulneráveis, onde pessoas e infraestruturas estão expostas. Ao destacar essa dimensão, o relatório mostra que a crise climática não é apenas um problema natural: ela é social e urbana, refletindo desigualdades históricas.
A face urbana da vulnerabilidade
O Brasil abriga hoje 12.348 favelas e comunidades urbanas, somando 16,5 milhões de habitantes. Mais da metade dessa população vive em áreas suscetíveis a enchentes, enxurradas e deslizamentos. Nessas localidades, infraestrutura precária, ausência de saneamento adequado e habitação em encostas ou margens de rios ampliam os riscos.
Apesar da gravidade da situação, metade das cidades não possui plano diretor atualizado, e poucas conseguem integrar políticas urbanas a planos de ação climática. Essa desconexão tem consequências diretas. Em 2023, o país registrou o maior número de deslocamentos internos por desastres em toda a América: 745 mil pessoas foram forçadas a deixar suas casas. Desde os anos 1990, o número de eventos extremos relacionados a chuvas triplicou e, somente na última década, os prejuízos econômicos somaram R$ 132 bilhões.

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Adaptação transformativa: mudar a raiz do problema
O relatório defende que enfrentar vulnerabilidades urbanas exige muito mais do que obras pontuais, como piscinões ou canalização de rios. Essas respostas, embora comuns, são limitadas e, em alguns casos, podem até piorar o cenário. O conceito-chave apresentado pelo estudo é a “adaptação transformativa”: um modelo de planejamento urbano capaz de atacar a desigualdade estrutural como a raiz da vulnerabilidade climática.
Segundo Maria Fernanda Lemos, professora de urbanismo da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e uma das autoras do documento, a transformação só é possível por meio da inclusão e da participação. “Não tem como produzir cidades justas sem que as pessoas participem das decisões. É preciso um esforço coletivo em todas as escalas, do global ao local, integrando diferentes setores da sociedade e da gestão pública”, reforça.
Soluções baseadas na natureza
Entre as propostas do relatório, as chamadas soluções baseadas na natureza ocupam lugar de destaque. Elas propõem o fortalecimento de infraestrutura verde e azul — como corredores ecológicos, arborização urbana, recuperação de rios e lagos, telhados verdes e pisos permeáveis. Além de ajudar no controle de enchentes e ondas de calor, essas medidas promovem biodiversidade, regulam o ciclo hídrico e melhoram a qualidade do ar.
Essas soluções têm reflexos diretos na saúde. Ambientes verdes reduzem doenças cardiovasculares como a hipertensão, que afeta quase 28% da população brasileira, estimulam a prática de atividades físicas e contribuem para diminuir a poluição atmosférica. O problema, porém, está no acesso desigual: bairros ricos concentram áreas verdes estruturadas, enquanto comunidades periféricas dependem de terrenos periurbanos sem manutenção.
No Brasil, iniciativas como o Cadastro Ambiental Urbano (CAU), do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima, surgem como instrumentos de gestão. Há também os Planos Municipais da Mata Atlântica e os programas de floresta urbana, que ajudam a mapear áreas prioritárias e reduzir desigualdades. No entanto, a implementação dessas políticas ainda enfrenta dificuldades financeiras e técnicas nas prefeituras.
O desafio da governança
Para transformar as cidades em territórios verdes, azuis e resilientes, o relatório defende uma governança inclusiva e multissetorial. A adaptação urbana depende de capacidade técnica local, mas também de acesso a mecanismos de financiamento inovadores. Entre os exemplos estão fundos internacionais como o Green Climate Fund, o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), e o C40 Cities Finance Facility, além de instrumentos nacionais como o IPTU progressivo e as operações urbanas consorciadas.
Outro pilar fundamental é a educação climática, vista como estratégia para fortalecer a consciência social e dar legitimidade às medidas de resiliência. A construção de cidades mais justas e sustentáveis depende de articulação entre políticas urbanas, justiça social e preservação ambiental.
O relatório conclui que o futuro urbano brasileiro será definido não apenas pela resposta a desastres, mas pela capacidade de antecipar riscos e transformar desigualdades em oportunidades. Criar cidades resilientes é, antes de tudo, um projeto coletivo que une ciência, política e cidadania em torno de um objetivo comum: garantir que os territórios do amanhã sejam mais seguros, inclusivos e sustentáveis do que os de hoje.






































