É um daqueles temas que, à primeira vista, parecem anedóticos demais para ocupar páginas científicas. Mas, olhando de perto, o cocô das aves marinhas revela-se uma peça-chave para compreender a ecologia dos oceanos e até os ciclos globais de carbono. Um estudo recente conduzido pela Universidade de Tóquio, publicado na revista Current Biology, acompanhou as rotinas fisiológicas das Cagarras listradas (Calonectris leucomelas) e trouxe à tona um comportamento intrigante: essas aves quase nunca defecam enquanto descansam na água, preferindo fazê-lo durante o voo, em intervalos surpreendentemente regulares.

A descoberta pode parecer trivial, mas suas implicações vão muito além da anedota. As fezes lançadas do céu fertilizam o oceano aberto, sustentando o crescimento de plâncton e de uma cadeia alimentar inteira que, em última instância, sequestra carbono da atmosfera. Em outras palavras: cocô aéreo também é serviço ecossistêmico.
O pesquisador Leo Uesaka, especialista em atmosfera e oceanos da Universidade de Tóquio, não tinha como objetivo original se tornar um observador compulsivo do que acontece no trato digestivo das cagarras. Seu interesse inicial era outro: registrar, com câmeras acopladas às aves, como elas decolam da superfície do mar. As cagarras possuem asas longas e estreitas, perfeitas para planar longas distâncias, mas pouco adaptadas para levantar voo com facilidade. Decolar exige energia extra — por isso Uesaka queria entender esse momento.
Mas, ao revisar as imagens, ele notou algo inusitado: muitas vezes, as aves mal decolavam e já defecavam, retornando em seguida para a superfície. E mais: aquelas que permaneciam em voo mantinham um ritmo preciso de defecação a cada 4 a 10 minutos, independentemente do momento da última refeição. Intrigado, o cientista decidiu seguir o fio da investigação. Durante quase 36 horas de gravações obtidas com câmeras acopladas ao corpo de 15 aves, ele e sua equipe observaram 195 eventos de excreção. Apenas um deles ocorreu com o animal ainda flutuando. A regra era clara: cocô, só no ar.

Do ponto de vista energético, faria sentido que a ave aproveitasse o descanso na superfície para eliminar resíduos. Defecar em pleno voo significa coordenar movimentos extras, o que poderia parecer custoso. Mas a biologia, quase sempre, equilibra custo e benefício de forma engenhosa. Os cientistas levantaram três hipóteses principais para explicar a escolha aérea: manter a plumagem limpa, já que fezes em contato com penas poderiam comprometer a impermeabilidade e a capacidade de voo; evitar predadores atraídos pelo cheiro, como tubarões ou focas; e, por fim, facilitar o processo fisiológico, aproveitando o movimento do corpo em voo para expulsar as fezes com mais eficiência.
Qualquer que seja a explicação dominante, o fato é que a estratégia parece bem-sucedida. As aves mantêm um ciclo regular de eliminação que, no fim das contas, desempenha um papel essencial para os ecossistemas marinhos. O impacto das fezes de aves marinhas nos ecossistemas já era conhecido em ambientes costeiros. Em ilhas e rochedos, o acúmulo de excrementos forma o chamado guano, rico em nitrogênio e fósforo, historicamente utilizado até como fertilizante agrícola. Mas o estudo japonês é pioneiro em demonstrar, com clareza, a rotina de defecação no mar aberto, região onde as cagarras passam a maior parte de suas vidas.
Segundo os cálculos da equipe, cada cagarra excreta em média 30 gramas por hora, o que corresponde a cerca de 5% de sua massa corporal diária. Parece pouco, mas o impacto coletivo é colossal. Estima-se que existam 424 milhões de aves do grupo dos Procellariiformes, ao qual pertencem as cagarras. Em conjunto, essas aves despejam no oceano o equivalente a seis cargas do navio Titanic em fezes todos os dias. Esse aporte constante de nutrientes alimenta organismos microscópicos como o plâncton, que são a base da cadeia alimentar marinha. Além disso, o plâncton é responsável por parte significativa da fixação de carbono atmosférico em matéria orgânica que, ao morrer e afundar, retira CO₂ da atmosfera por milhares de anos. Ou seja, sem exagero, as cagarras e seus parentes são pequenas aliadas na luta contra as mudanças climáticas.

O desafio de estudar o cocô aéreo não é pequeno. As aves passam dias longe da costa, planando em áreas remotas do oceano Pacífico. A solução encontrada pela equipe foi instalar câmeras de vídeo acopladas ao abdômen dos animais. O resultado foi uma espécie de “reality show” científico, com horas de gravação que revelavam detalhes até então invisíveis do cotidiano desses animais. No total, foram documentados 195 episódios de excreção, em um padrão que dificilmente poderia ser identificado por observadores em barcos ou por técnicas indiretas.
A metodologia abre caminho para novas pesquisas. Uesaka já planeja integrar as câmeras a sistemas de GPS, o que permitiria mapear a distribuição das fezes no oceano e relacionar as áreas de maior aporte de nutrientes com a produtividade do plâncton. “As fezes são importantes, mas as pessoas não pensam nelas”, resumiu o pesquisador em tom bem-humorado.
O que esse estudo traz de novo não é apenas a descrição de um comportamento curioso, mas a noção de que até processos aparentemente banais desempenham papéis fundamentais em escalas planetárias. O cocô aéreo das cagarras conecta o metabolismo de um animal à fertilização de vastas áreas do oceano e, em última instância, ao equilíbrio do clima. O ciclo é simples, mas poderoso: as aves consomem peixes e organismos marinhos; durante o voo, liberam excrementos ricos em nutrientes; esses nutrientes alimentam o plâncton; o plâncton captura carbono atmosférico e sustenta cadeias alimentares inteiras.
É uma engrenagem discreta da chamada bioeconomia natural, na qual os resíduos de uns se tornam a base da vida de outros. O estudo da Universidade de Tóquio é um lembrete de que a ecologia, muitas vezes, se esconde nos detalhes menos glamurosos. Observar quando e onde aves fazem cocô pode parecer irrelevante, mas é justamente esse olhar atento que revela a teia complexa de interações que mantém a vida no planeta.
Enquanto governos discutem políticas de preservação e cientistas buscam soluções tecnológicas para crises ambientais, a natureza continua a desempenhar silenciosamente suas funções. No caso das cagarras, o simples ato de defecar em pleno voo contribui para fertilizar os oceanos e manter o clima em relativo equilíbrio.
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