Amazonia Empreendedora, BID oferece Crédito nas Margens da Maior Floresta Tropical do Mundo


Em um país onde as micro, pequenas e médias empresas sustentam quase três quartos dos empregos formais e movimentam um terço do PIB, falar de acesso ao crédito é falar de vida cotidiana. Quando esse debate entra na textura viva da Amazônia Legal, ganha contornos ainda mais complexos. Estradas de terra, rios que serpenteiam por selvas densas e vilarejos sem agências bancárias formam um cenário que desafia modelos convencionais de desenvolvimento. É aí que BID Invest e Stone Instituição de Pagamento entram em cena, costurando uma proposta de R$ 295 milhões (cerca de US$ 50 milhões) para levar capital a quem, há muito, se vira sem a tutela dos grandes bancos.

BID e Stone firmam acordo de R$ 295 milhões para levar crédito a micro e pequenas empresas na Amazônia Legal, unindo inclusão e regeneração

O acordo, anunciado em Washington, desenha-se sob o guarda-chuva do programa Amazonia Sempre, uma iniciativa do Banco Interamericano de Desenvolvimento que combina ambição ambiental com agendas socioeconômicas. Se a floresta é reconhecida como guardiã de 20% do oxigênio do planeta e habitat de uma biodiversidade única, também é palco de comunidades que resistem a pressões históricas — indígenas, ribeirinhos, extrativistas e pequenos empreendedores. Nesse mosaico, as mipymes (omicron, pequenas e médias empresas) surgem como vetores de transformação, capazes de gerar renda local e, ao mesmo tempo, preservar saberes e práticas ancestrais.

Em grande parte do interior do Brasil, a simples posse de um aparelho para pagamentos com cartão já soava distante até anteontem. Stone, que desde 2012 vem revolucionando o setor de pagamentos digitais, acumulou know-how para inserir mais de quatro milhões de empreendedores em uma rede de 5.500 cidades. No entanto, ao extrapolar o asfalto dos centros urbanos, descobriu desafios inéditos: conectividade instável, desconhecimento sobre gestão financeira e obstáculos burocráticos. Surgiu, então, a parceria com BID Invest, cujo papel vai além de prover recursos: envolve também consultoria para fortalecer o modelo de crédito, alinhando-o às peculiaridades da Amazônia.

Ter acesso ao crédito formal, para muitas empresas familiares e cooperativas amazônicas, significava enfrentar, ao mesmo tempo, o calvário da documentação e a incerteza de garantias. Altas taxas de juros e exigências de comprovação de fluxo de caixa praticamente impederam o surgimento de negócios em setores promissores, como a bioeconomia ou a produção de insumos florestais não madeireiros. O novo financiamento pretende quebrar esse ciclo, oferecendo prazos e condições que reflitam a realidade local.

O valor — quase meio bilhão de reais — endereça uma lacuna identificada no Relatório de Inclusão Financeira de 2023: 42% das microempresas da Amazônia Legal jamais contraiu empréstimos bancários formais, dependendo de financiamentos informais a juros predatórios. A aposta do programa Amazonia Sempre é, justamente, inverter essa estatística, levando disciplina financeira ao lado de capacitação e acompanhamento. Vão desde workshops presenciais, em Santarém, Itaituba e Marabá, até mentorias online que discutem fluxo de caixa, planejamento tributário e estratégias de mercado.

Se a produção de commodities florestais não madeireiras — castanha-do-pará, açaí, látex nativo — carrega uma força cultural, a estruturação desses negócios demanda protocolos de rastreabilidade, certificação socioambiental e cadeias curtas de comercialização. Esse filão, que movimentou no ano passado cerca de US$ 1,2 bilhão, segundo dados do IBGE, tem potencial para se expandir, sobretudo se contar com linhas de crédito próprias, desenhadas em diálogo com associações comunitárias e cooperativas. Nesse ponto, Stone e BID Invest não oferecem apenas dinheiro, mas um pacto de corresponsabilidade: a pedra angular de uma proposta de desenvolvimento que concilia lucro e regeneração.

O financiamento também dedica atenção especial às iniciativas tocadas por mulheres. Em muitas comunidades ribeirinhas, elas são guardiãs de saberes tradicionais e gestores informais da economia familiar. Ao incluir soluções financeiras e não financeiras — como treinamentos sobre governança e apoio à formalização jurídica — a aliança busca corrigir desigualdades que, historicamente, relegaram essas empreendedoras ao submundo de crédito privado, com juros que podem ultrapassar 25% ao mês.

A coesão desse arranjo se expressa em múltiplos níveis. Primeiro, na interlocução direta: o modelo de governança do programa prevê comitês locais de monitoramento, compostos por representantes de prefeituras, organizações indígenas, associações de catadores e secretarias estaduais de desenvolvimento. Esses colegiados avaliam performance, sugerem ajustes e ajudam a construir indicadores de impacto que vão além do número de contratos assinados. Fotografam benefícios sociais, ambientais e até culturais, mensurando economia de carbono evitada, aumento de renda e até a extensão de territórios comunitários sob manejo sustentável.

Há uma digressão urgente aqui, que é a da conectividade: sem internet estável, nenhuma agenda de inovação prospera. Governos estaduais, pressionados pela agenda global de descarbonização, começam a firmar parcerias público-privadas para levar fibra óptica a locais antes isolados. Mas até mesmo essa infraestrutura requer viabilidade econômica — um quebra-cabeça que só se resolve se o volume de operações financeiras crescer de forma a sustentar o investimento. Em última instância, cada transação realizada por uma pequena pousada ou um artesão de biojóias ajuda a equilibrar essa balança.

Ao celebrar a assinatura do acordo, executivos de Stone e assessores de BID Invest ressaltaram a complementaridade entre tecnologia e propósito. Não se trata de fintechs à margem, mas de atores que buscam consolidar um ecossistema inclusivo. A meta, no horizonte de cinco anos, é ampliar em 20% o número de pequenas empresas com acesso a crédito rural ou urbano na região. Esse indicador, se mantido, pode significar milhares de oportunidades, empregos e, sobretudo, o fortalecimento de identidades locais.

É fundamental reconhecer, porém, que o sucesso de um trato como esse depende de fatores extrafinanceiros. A estabilização política no Brasil, o cumprimento de marcos regulatórios e o engajamento de atores institucionais — desde bancos públicos até agências de fomento estaduais — são peças indispensáveis. Qualquer solavanco na ordem jurídica ou no ambiente de negócios tende a elevar o custo de captação e, por consequência, encarecer o crédito, anulando parte dos ganhos almejados.

Em contraste com as soluções-padrão de crédito, muitas vezes insensíveis às assimetrias regionais, a parceria entre BID Invest e Stone propõe uma trajetória de aprendizagem mútua: a fintech aprende com as lógicas da floresta; o banco de desenvolvimento, com as demandas reais de empresários sem acesso a filiais. É desse encontro que brota a possibilidade de um modelo exportável para outras regiões vulneráveis da América Latina e do Caribe.

E, enquanto o mundo acompanha a Amazônia como símbolo de uma crise climática, pouco se discute a Amazônia como laboratório de inovação social. Cada empréstimo aprovado representa não apenas a compra de uma nova máquina de beneficiamento de castanha, mas a continuidade de práticas ancestrais de manejo; não apenas a construção de um galpão para armazenagem de pimenta-do-reino, mas a manutenção de um arranjo comunitário de trabalho.

Em suma, fala-se aqui de algo que ultrapassa o conceito de crédito. Trata-se de estabelecer um pacto de longo prazo, alinhado a um paradigma sustentável que combine mercado, natureza e cultura. Que tome o pulso das margens dos rios e o transpasse para relatórios de impacto. Que use a régua da lucratividade, mas também a bússola da equidade.

É nessa tessitura complexa que se define o futuro da Amazônia Legal. Com recursos fluindo por canais antes secos, uma nova paisagem econômica e social pode surgir: feita de pequenas empresas, de saberes guardados por gerações e de comunidades que não mais dependem, exclusivamente, da extração predatória.

Se esse movimento ganhar tração, a Amazônia deixará de ser vista apenas como fronteira ambiental. Passará a ser reconhecida como celeiro de ideias, de negócios regenerativos e de narrativas que atravessam séculos, costurando passado e futuro. Em última instância, o que se constrói nessa aliança é um lembrete de que a verdadeira revolução econômica, para ser duradoura, não pode ignorar as vozes que sempre habitaram a mata.