A História das Cuias no Grão-Pará
Martins, que coordena o Labya-Yala – Laboratório de Estudos Decoloniais – e o projeto “Barroco-açu: a América Portuguesa na geografia artística do Sul global”, fez uma análise profunda da produção de cuias envernizadas no Grão-Pará durante o século XVIII. Seu estudo revelou que essas cuias eram fabricadas por mulheres indígenas usando técnicas complexas para produzir acabamentos pretos, brilhantes e duráveis, o que foi comparado à laca asiática. O artigo completo sobre este estudo pode ser acessado no periódico Heritage.
As Cuias e o Comércio Global
Esses objetos eram fabricados em manufaturas controladas por colonos ou em missões religiosas, sendo destinadas principalmente ao mercado europeu. As cuias de Monte Alegre, hoje uma cidade no Pará, eram extremamente populares, com produção anual estimada entre 5 mil e 6 mil unidades, enviadas principalmente para Lisboa e outros destinos europeus. Essas cuias, decoradas com motivos inspirados na flora e fauna local, bem como com padrões asiáticos e europeus, eram um testemunho do intercâmbio artístico global da época.
A Produção Atual das Cuias no Baixo Amazonas
Em 2023, Renata Martins visitou a comunidade de Carapanatuba, na região do Aritapera, em Santarém, onde a produção de cuias ainda segue viva. Hoje, são mulheres empoderadas que mantêm essa tradição, representadas pela Associação das Artesãs Ribeirinhas de Santarém (Asarisan), criada em 2003. Essa organização desempenhou papel crucial para o reconhecimento do “Modo de Fazer Cuias do Baixo Amazonas” como Patrimônio Cultural do Brasil, inscrito no Livro de Registro dos Saberes do Iphan em 2015.
O Processo de Produção das Cuias
O processo de fabricação das cuias segue tradições ancestrais que incluem a colheita cuidadosa dos frutos das cuieiras, seguidos pela secagem, raspagem e envernizamento. A técnica envolve o uso do cumatê, uma tintura vermelha derivada de cascas de árvores locais. Após várias camadas de tintura, as cuias são submetidas a uma reação química com urina, o que confere a característica “laca” negra brilhante, comparável às melhores lacas chinesas.
O Papel das Mulheres na Produção das Cuias
Desde o século XVIII, o ofício de pintoras de cuias era uma atividade valorizada e reconhecida. As mulheres indígenas, africanas e mestiças que fabricavam essas cuias demonstravam grande domínio sobre técnicas artísticas e conhecimentos naturais. Atualmente, mulheres como Lélia Maduro, Marinalva Correia e outras continuam a preservar esses saberes, adaptando-se às necessidades contemporâneas, mas mantendo a essência do conhecimento ancestral.
O Significado Cultural e Ritualístico das Cuias
Além de seu valor econômico e estético, as cuias possuem um profundo significado cultural e espiritual para as comunidades indígenas da Amazônia. Tradicionalmente associadas à fertilidade e aos rituais de cura, essas cuias são usadas para preparar banhos terapêuticos e benzimentos, bem como para servir alimentos típicos, como o tacacá.
As Cuias no Mercado Europeu e Sua Influência Asiática
Durante o período colonial, a produção de cuias foi direcionada para o mercado europeu, onde eram vistas como itens luxuosos e exóticos. Inspiradas por objetos asiáticos, como porcelanas e bordados, as cuias amazônicas foram adaptadas por artesãs indígenas, que combinavam materiais locais para criar peças únicas que refletiam o intercâmbio global da época.
A Influência Artística e Cultural das Mulheres Indígenas
O trabalho das mulheres indígenas foi fundamental para o desenvolvimento de técnicas artísticas na Amazônia colonial. Sua conexão com a natureza, o uso de plantas medicinais e materiais como a resina de copaíba e o jutaí permitiram a criação de objetos que se destacavam pela beleza e qualidade. Esse protagonismo feminino muitas vezes invisibilizado é essencial para entender a complexidade cultural e artística da Amazônia.
A produção de cuias na Amazônia é um exemplo vivo de resistência cultural e artística, que atravessa séculos e se adapta às mudanças sociais e econômicas. O reconhecimento das cuias como Patrimônio Cultural do Brasil é um passo importante para valorizar e preservar essa tradição, que continua a ser passada de geração em geração pelas mulheres das comunidades ribeirinhas.
Para saber mais sobre o estudo de Renata Maria de Almeida Martins, acesse o artigo completo em Heritage.