Retrocesso histórico marca novo capítulo da política ambiental


O Brasil encerrou novembro assistindo a um movimento que redesenha profundamente sua política ambiental. Em uma sessão marcada por tensionamentos e articulações de bastidores, o Congresso Nacional derrubou 56 dos 63 vetos presidenciais à nova Lei Geral de Licenciamento Ambiental. O resultado prático foi o ressurgimento do chamado PL da Devastação, reconstituído peça por peça, mesmo após sua versão original ter sido parcialmente barrada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Foto: Geraldo Magela/Agência Senado

Para especialistas, organizações socioambientais e juristas, a decisão representa o maior retrocesso normativo já imposto ao meio ambiente desde a criação da Política Nacional do Meio Ambiente, em 1981. A avaliação é quase unânime entre as entidades que compõem o Observatório do Clima, que já anunciaram a intenção de recorrer ao Supremo Tribunal Federal para tentar reverter o novo marco.

O licenciamento ambiental, pilar central da política ambiental brasileira, é responsável por regular todas as atividades que utilizam recursos naturais ou que possam gerar impactos significativos. Inclui desde empreendimentos agrícolas e postos de combustíveis até obras de infraestrutura, estradas, hidrelétricas, mineração e projetos industriais. A derrubada dos vetos, porém, altera completamente essa estrutura. Entre os pontos restituídos pelo Congresso, está a ampliação da Licença por Adesão e Compromisso, a LAC — o chamado autolicenciamento. Antes limitada a empreendimentos de baixo impacto, ela agora passa a abranger também obras de médio impacto. O efeito estimado pelas entidades é avassalador: cerca de 90% dos licenciamentos estaduais poderão ser liberados de forma automática, num clique, sem análise técnica prévia. A mudança colide com decisões já consolidadas do Supremo e enfraquece a capacidade de prevenção dos órgãos ambientais.

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A nova lei também dispensa de licenciamento toda a atividade agropecuária extensiva, mesmo nos casos em que o Cadastro Ambiental Rural da propriedade ainda não foi homologado. Isso significa que fazendas em áreas griladas ou com desmatamento ilegal poderão operar normalmente, sem qualquer controle ambiental. Grandes obras de infraestrutura, como a pavimentação da BR-319 — associada a risco de explosão do desmatamento ao longo de sua rota — entram na mesma lógica de dispensa ou flexibilização, criando um passaporte para a expansão de danos irreversíveis.

Outro ponto crítico é a autorização para que estados e municípios criem regras próprias de licenciamento, o que fragmenta o sistema nacional e esvazia a função da norma federal. Para organizações como o Instituto Socioambiental, isso abre caminho para que territórios indígenas não homologados e áreas quilombolas ainda sem titulação sejam atravessados por empreendimentos sem consulta, sem salvaguardas e sem compensação.

A sessão do Congresso teve protagonistas claros. A bancada ruralista foi a força motriz, mas duas figuras exerceram liderança decisiva: o presidente da Câmara, Hugo Mota, e o presidente do Senado, Davi Alcolumbre. Este último ignorou um acordo firmado com o Executivo em torno da Medida Provisória da Licença Ambiental Especial, mecanismo criado por ele para acelerar o licenciamento da exploração de petróleo na Foz do Amazonas. A própria MP ainda será votada e já acumula mais de 800 emendas que reacendem, sob nova roupagem, os mesmos dispositivos do PL da Devastação.

As organizações socioambientais reagiram imediatamente. Para Suely Araújo, do Observatório do Clima, a decisão destrói o licenciamento ambiental ao reintroduzir dispositivos que fragilizam salvaguardas e reduzem responsabilidades, inclusive de instituições financeiras. Letícia Camargo, do Painel Mar, destacou o impacto direto sobre biomas, áreas de pesca artesanal e territórios tradicionais, chamando o episódio de ataque à segurança jurídica ambiental. Representantes de entidades internacionais, como a Proteção Animal Mundial, afirmaram que a medida desconsidera vidas humanas e não humanas ao favorecer a devastação de ecossistemas.

O diagnóstico de organizações como o Greenpeace Brasil e o NOSSAS converge: a nova lei se traduz em uma licença para devastar, com efeitos que incluem expulsões forçadas de povos indígenas, aceleração de projetos petrolíferos e aumento da vulnerabilidade socioambiental em todo o país. Instituições como a Avaaz e o Instituto Democracia e Sustentabilidade reforçam que a norma nasce inconstitucional e aprofunda os riscos num momento em que o país enfrenta eventos climáticos extremos cada vez mais frequentes.

O episódio deixa um alerta: o licenciamento ambiental, antes considerado ferramenta essencial para equilibrar desenvolvimento e proteção dos territórios, passa agora por um processo de desmonte. E o país, recém-saído da COP30 e comprometido com metas climáticas ambiciosas, vê sua governança ambiental colocada em xeque num momento decisivo para o futuro da Amazônia e para a segurança climática global.