STF reafirma inconstitucionalidade do marco temporal indígena


O Supremo reafirma a Constituição e encerra a tese do marco temporal

O Supremo Tribunal Federal decidiu derrubar, mais uma vez, a tese do marco temporal para a demarcação de terras indígenas, consolidando o entendimento de que o direito territorial dos povos originários não pode ser limitado à ocupação física registrada em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição. A decisão foi tomada em julgamento concluído nesta quinta-feira, em Brasília, e representa um marco jurídico e político de grande alcance.

Cimi - Conselho Indigenista Missionário

Com a votação, o STF reconheceu a inconstitucionalidade da interpretação segundo a qual apenas as terras ocupadas ou judicialmente disputadas pelos indígenas naquele momento histórico poderiam ser demarcadas. Para a maioria dos ministros, esse recorte temporal ignora a própria história do país, marcada por expulsões forçadas, violência institucional e deslocamentos compulsórios de comunidades indígenas muito antes de 1988.

Ao afastar definitivamente essa tese, o Supremo reafirma que os direitos indígenas sobre suas terras são originários, isto é, anteriores à formação do Estado brasileiro. A Constituição de 1988 não cria esses direitos, mas os reconhece, impondo ao poder público o dever de identificá-los, demarcá-los e protegê-los.

Os detalhes finais da decisão ainda serão oficialmente publicados, após o encerramento formal do julgamento virtual, previsto para o fim do dia. Ainda assim, o resultado já projeta efeitos profundos sobre processos de demarcação em curso e sobre o debate político em torno do tema.

Divergências internas e os pontos ainda em aberto

Apesar da decisão majoritária contra o marco temporal, o julgamento revelou divergências relevantes entre os ministros em relação a aspectos práticos e sensíveis da implementação desse entendimento. O relator do caso, ministro Gilmar Mendes, apresentou propostas que buscavam estabelecer parâmetros para situações específicas, como a indenização de produtores rurais que ocupam áreas posteriormente reconhecidas como terras indígenas.

Esses pontos, no entanto, não alcançaram consenso. Parte do colegiado demonstrou preocupação com o risco de criar regras que, na prática, possam relativizar o direito indígena ou gerar obstáculos adicionais às demarcações. Outros ministros enfatizaram a necessidade de segurança jurídica para ocupantes não indígenas que adquiriram terras de boa-fé, muitas vezes com títulos concedidos pelo próprio Estado.

A ausência de acordo sobre esses temas indica que o julgamento encerra a discussão sobre o marco temporal, mas não esgota o debate sobre como conciliar direitos originários, responsabilidade estatal e conflitos fundiários concretos. A publicação do acórdão será decisiva para compreender quais balizas jurídicas prevalecerão nos próximos anos.

O que se consolida, porém, é a rejeição clara à ideia de que a Constituição possa ser interpretada de forma a legitimar injustiças históricas. Para o STF, a data de 1988 não pode funcionar como uma linha de corte que apaga séculos de expulsões e violações.

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Marcello Casal Jr/Agência Brasil/Arquivo

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Um embate que atravessa os Três Poderes

A decisão do Supremo ocorre em um contexto de intensa disputa institucional. Em 2023, a Corte já havia declarado a tese do marco temporal inconstitucional. No mesmo período, o Congresso Nacional aprovou a Lei 14.701/2023, que incorporava essa interpretação ao ordenamento jurídico. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva vetou trechos centrais da norma, mas o veto foi derrubado pelo Parlamento.

Após a derrubada do veto, partidos como PL, PP e Republicanos recorreram ao STF para tentar preservar a validade da lei aprovada pelo Congresso. Do outro lado, organizações indígenas e partidos alinhados ao governo acionaram a Corte para reafirmar a inconstitucionalidade da tese.

Esse movimento revela um conflito aberto entre os Poderes sobre quem tem a palavra final na definição dos direitos territoriais indígenas. Ao reiterar sua posição, o STF reforça o papel do Judiciário como guardião da Constituição, mesmo diante de pressões legislativas e políticas.

Paralelamente, o Senado Federal aprovou a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 48/23, que busca inserir explicitamente o marco temporal no texto constitucional. A iniciativa amplia o embate e sinaliza que a disputa está longe de se encerrar no plano político, ainda que, juridicamente, a tese tenha sido afastada pelo Supremo.

Impactos jurídicos, políticos e simbólicos da decisão

A derrubada do marco temporal produz efeitos que vão além do campo jurídico. Do ponto de vista prático, a decisão tende a destravar processos de demarcação que estavam paralisados ou ameaçados pela aplicação dessa tese. Também fortalece a posição do Estado brasileiro em compromissos internacionais relacionados aos direitos humanos e à proteção dos povos indígenas.

No plano político, a decisão reacende tensões entre o Supremo, o Congresso e setores do agronegócio que defendem a tese como forma de limitar novas demarcações. Ao mesmo tempo, é recebida como uma vitória histórica por organizações indígenas, que veem no julgamento um reconhecimento institucional de suas trajetórias de resistência.

Há ainda um impacto simbólico profundo. Ao rejeitar o marco temporal, o STF afirma que a Constituição de 1988 não pode ser lida de forma descolada da realidade histórica do país. O direito indígena à terra não é um favor do Estado, nem um privilégio recente, mas um elemento estrutural da formação do Brasil.

O desfecho do julgamento não encerra os conflitos fundiários nem elimina disputas políticas, mas estabelece um ponto de referência incontornável: qualquer tentativa de restringir direitos indígenas por meio de recortes temporais arbitrários afronta a Constituição. A partir dessa decisão, o debate passa a girar menos em torno do “se” e mais do “como” garantir esses direitos de forma justa, responsável e juridicamente segura.