Quando a ciência começa dentro da favela
As mudanças climáticas já não são uma abstração para milhões de brasileiros que vivem em favelas. Elas chegam em forma de enchentes repentinas, deslizamentos de encostas, ondas de calor sufocantes e doenças associadas à precariedade da infraestrutura urbana. Ainda assim, esses territórios continuam sendo pouco considerados nos dados oficiais que orientam políticas públicas. É a partir dessa lacuna que nasce o Projeto Pacha, uma iniciativa internacional que propõe inverter a lógica tradicional da pesquisa científica: em vez de estudar as favelas à distância, construir o conhecimento com quem vive nelas.

Até 2027, universidades brasileiras e britânicas irão trabalhar diretamente com comunidades de Natal (RN), Curitiba (PR) e Niterói (RJ) para investigar como a crise climática afeta o cotidiano das favelas e quais estratégias já estão sendo desenvolvidas localmente para lidar com esses impactos. Mais do que um estudo acadêmico, o projeto aposta na participação ativa dos moradores como pesquisadores, produtores de dados e agentes de transformação.
A coordenação geral é do cientista brasileiro João Porto de Albuquerque, diretor do Urban Big Data Centre, da Universidade de Glasgow, no Reino Unido. O financiamento, superior a R$ 14 milhões, vem da Wellcome Trust, fundação britânica sem fins lucrativos que apoia pesquisas nas áreas de saúde, clima e desigualdades sociais.
Dados que não enxergam a periferia
No Brasil, todos os municípios são obrigados a elaborar planos de mitigação e adaptação às mudanças climáticas. O problema, como explica Paulo Nascimento, coordenador do Programa de Pós-Graduação em Gestão Urbana da Pontifícia Universidade Católica do Paraná – PUCPR, é que esses planos costumam se apoiar em bases de dados que retratam quase exclusivamente a cidade formal.
As favelas, apesar de concentrarem parte significativa da população urbana e dos riscos climáticos, permanecem sub-representadas nas estatísticas oficiais. Ruas que não aparecem nos mapas, moradias fora do cadastro e dinâmicas próprias de ocupação acabam invisibilizadas. O resultado são políticas públicas que não dialogam com a realidade desses territórios.
O Projeto Pacha parte justamente da crítica a esse modelo. A proposta é construir indicadores climáticos, sociais e de saúde produzidos coletivamente com os moradores das comunidades estudadas. Em vez de impor categorias externas, os pesquisadores querem entender quais problemas são considerados mais urgentes por quem vive nas favelas e como essas populações já vêm desenvolvendo respostas no dia a dia.

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Pesquisadores comunitários e ciência compartilhada
Um dos pilares centrais do projeto é a formação de pesquisadores comunitários. Além de bolsas de doutorado e pós-doutorado, o Pacha vai lançar, a partir de janeiro de 2026, editais específicos para selecionar moradores das próprias favelas de Natal, Curitiba e Niterói como integrantes remunerados da equipe de pesquisa.
Esses pesquisadores locais terão papel fundamental não apenas na coleta de dados, mas no engajamento das comunidades, na tradução do conhecimento científico e na continuidade das capacidades criadas após o encerramento formal do projeto. A ideia é que o conhecimento produzido não desapareça com o fim do financiamento, mas permaneça nos territórios.
A abordagem rompe com a visão tradicional que enxerga as favelas apenas pela ótica da carência. Em vez disso, o projeto busca identificar saberes, estratégias de adaptação e redes de solidariedade já existentes, aprendendo com elas. Trata-se de uma ciência construída de baixo para cima, baseada na cocriação e no reconhecimento da experiência cotidiana como fonte legítima de conhecimento.
Clima, desigualdade e políticas públicas
Os números ajudam a dimensionar a urgência do tema. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, o Brasil tinha, em 2022, mais de 12 mil favelas, onde viviam cerca de 16,39 milhões de pessoas — o equivalente a 8,1% da população nacional. Essas áreas concentram alguns dos maiores riscos climáticos do país, justamente por combinarem alta densidade populacional, moradias precárias e baixa oferta de infraestrutura urbana.
Chuvas intensas provocam alagamentos e deslizamentos; períodos de estiagem agravam a escassez de água; ondas de calor afetam de forma desproporcional quem vive em casas mal ventiladas e sem áreas verdes. Ainda assim, essas desigualdades raramente aparecem de forma integrada nas políticas de adaptação climática.
Para enfrentar esse desafio, o Projeto Pacha conta também com a parceria da Fundação Oswaldo Cruz – Fiocruz, por meio do Centro de Integração de Dados em Saúde – CIDACS. O centro trabalha com bases como o Cadastro Único (CadÚnico), permitindo cruzar dados de saúde com recortes de renda, raça, gênero e idade. Isso possibilita compreender como diferentes grupos dentro das favelas são afetados de maneiras distintas pelos riscos climáticos.
O objetivo final é subsidiar políticas públicas mais sensíveis às desigualdades sociais e ambientais, oferecendo diagnósticos e indicadores que façam sentido para as próprias comunidades. Os resultados consolidados do projeto devem ser divulgados no final de 2027, mas encontros semestrais nas cidades participantes já estão previstos para apresentar avanços parciais e manter o diálogo aberto.
Na primeira semana de dezembro, pesquisadores brasileiros se reuniram em Natal com representantes da Universidade de Glasgow, da Secretaria Nacional de Periferias, do Ministério das Cidades e do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais – Cemaden, além de lideranças comunitárias locais. Ali, mais do que lançar um projeto, foi firmado um compromisso: sem ouvir quem vive na linha de frente da crise climática, não haverá adaptação possível.















































