O fim da moratória da soja na Amazônia, decidido pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), reacendeu o alerta entre povos indígenas, ambientalistas e integrantes do governo sobre o risco de avanço do desmatamento em territórios protegidos. A decisão, anunciada em 30 de setembro, encerra a partir de 1º de janeiro de 2026 um dos acordos mais simbólicos entre o agronegócio e a sociedade civil — o pacto que impedia a compra de soja cultivada em áreas desmatadas na Amazônia após 2008.

A medida chega em um momento sensível. Enquanto o Ministério dos Povos Indígenas (MPI) se mobiliza para garantir a presença de três mil indígenas na COP30 e tenta avançar nas demarcações de terras, o desmonte do acordo ameaça justamente as populações que o governo diz querer proteger.
Um acordo que conteve o desmatamento
Firmada em 2006 e formalizada em 2008, a moratória da soja foi resultado da pressão internacional sobre empresas e associações do setor. As signatárias, reunidas no Grupo de Trabalho da Soja, comprometeram-se a não adquirir grãos de áreas desmatadas após 22 de julho de 2008. O pacto ajudou a conter o avanço da sojicultura sobre a floresta, redirecionando o cultivo para áreas já abertas, segundo avaliações de pesquisadores e do próprio mercado.
O fim da moratória, no entanto, nasceu no coração do Congresso Nacional. A investigação do Cade foi aberta após uma representação da Comissão de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural da Câmara dos Deputados, impulsionada por nomes ligados à Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA). O deputado Evair de Melo (PP-BA), um dos expoentes da bancada ruralista, foi apontado como articulador da ofensiva contra o pacto.

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Reação do governo e da sociedade civil
A decisão do Cade pegou parte do governo de surpresa. O Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima foi o primeiro a se posicionar contra a medida, classificando-a como um retrocesso para o controle do desmatamento. Já o MPI e a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) ainda avaliam os impactos.
O secretário nacional de Direitos Territoriais Indígenas, Marcos Kaingang, reconheceu que o fim da moratória ameaça os territórios indígenas. “Sabemos que a moratória ajudou a conter o avanço da soja na floresta. Não parece uma decisão que contribua para a proteção e a conservação da Amazônia”, afirmou.
Para a consultora-sênior da organização Mighty Earth, Mariana Gameiro, o Cade abre caminho para uma “catástrofe ambiental”. “É uma decisão inaceitável não só no Brasil, mas também no cenário internacional. Mesmo com limitações, a moratória foi uma ferramenta eficaz para reduzir o desmatamento ligado à soja”, avaliou.
Pressões sobre o Ministério dos Povos Indígenas
Em meio à polêmica, a ministra Sônia Guajajara admitiu que o ministério ainda não teve tempo para se aprofundar no tema. “Nossa posição é ser porta-voz dos povos indígenas, especialmente em casos que trazem grandes prejuízos para territórios e comunidades”, declarou durante um encontro com jornalistas em 7 de outubro.
Apesar do impasse, Guajajara pretende levar o debate à COP30, que será sediada em Belém (PA). Segundo ela, o fim da moratória deve se tornar um dos temas de embate internacional, sobretudo por representar uma contradição entre o discurso de sustentabilidade do agronegócio e a prática de liberar novas áreas de cultivo em plena Amazônia.
Demarcação como meta climática
Enquanto tenta reagir à ofensiva ruralista, o Ministério dos Povos Indígenas prepara sua principal entrega para a conferência: incluir a demarcação de terras indígenas na Contribuição Nacionalmente Determinada (NDC) do Brasil — o documento que define as metas de cada país no âmbito do Acordo de Paris.
A proposta é comprometer o país a proteger 72% das terras indígenas já reconhecidas até 2035, reforçando o papel desses territórios na absorção de carbono e na regulação climática. O anúncio deve ocorrer durante o evento em Belém, que marcará os dez anos do Acordo de Paris e contará com a presença de cerca de três mil lideranças indígenas de todo o mundo.
“Queremos mostrar que proteger territórios é também combater as mudanças climáticas. Sem garantir a terra, não há como garantir o futuro”, disse Guajajara.
A contradição entre o avanço do agronegócio e a promessa de justiça climática promete fazer da COP30 não apenas uma conferência ambiental, mas um teste de coerência para o Brasil — entre o discurso verde e a realidade da floresta.











































