Descoberta de fóssil de tartaruga gigante reescreve a pré-história da Amazônia acreana


A floresta amazônica, guardiã de incontáveis mistérios, acaba de revelar mais um tesouro de seu passado remoto: o fóssil extraordinariamente preservado de uma tartaruga gigante, um exemplar da lendária Stupendemys geographicus.

tartaruga

Stupendemys geographicus

Este achado monumental, ocorrido na região de Boca dos Patos, em Assis Brasil, no coração do Acre, transporta cientistas e entusiastas da pré-história para um período entre 10,8 e 8,5 milhões de anos atrás, durante o Mioceno, quando criaturas de dimensões colossais dominavam os cursos d’água de uma proto-Amazônia.

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Fonte: BBC NEWS BRASIL

O local da descoberta, embora remoto e desafiador, entregou aos pesquisadores uma peça inestimável para o quebra-cabeça da evolução da vida na América do Sul. A carapaça, mesmo que incompleta a partir da cintura, impressiona por suas dimensões, aproximadamente 1,70 metro de largura, e sugere um animal que, em vida, poderia ter atingido quase 3 metros de comprimento. Este é um registro espetacular de uma “supertartaruga”, um testemunho pétreo de um ecossistema aquático ancestral.

A Expedição “Novas Fronteiras”: Um Mergulho no Passado Amazônico

A proeza desta descoberta se deve a um esforço colaborativo, liderado pelos professores e paleontólogos Carlos D’Apolito Júnior, da Universidade Federal do Acre (Ufac), e Annie Schmaltz Hsiou, da Universidade de São Paulo (USP). Juntos, coordenam o ambicioso projeto “Novas fronteiras no registro fossilífero da Amazônia Sul-ocidental”, uma iniciativa fundamental financiada pelo edital Expedições Científicas, parte da prestigiada Iniciativa Amazônia+10.

Este programa, que conta com o apoio do Conselho Nacional das Fundações Estaduais de Amparo à Pesquisa (Confap), do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), da FAPESP e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Acre (Fapac), demonstra a sinergia necessária para desvendar os segredos de um bioma tão complexo e vasto como o amazônico.

A professora Hsiou, com quase duas décadas de dedicação ao estudo da região, expressou sua empolgação com o achado. “Encontramos uma carapaça da maior tartaruga de água doce que já existiu”, revela, enfatizando a singularidade da descoberta que promete redefinir o entendimento sobre a Stupendemys geographicus. A raridade de um fóssil tão bem preservado, em contraste com a fragmentação usual dos achados na Amazônia, é um divisor de águas para a paleontologia.

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Fonte: Planeta Amazônia

Desvendando um Mioceno de Gigantes: A Amazônia de Milhões de Anos Atrás

A diversidade fossilífera da Amazônia sul-ocidental é reconhecida há mais de um século e meio, com sítios fossilíferos consolidados ao longo dos barrancos e margens dos rios do Acre. No entanto, o desafio sempre foi a natureza fragmentada dos achados. “É comum acharmos pedaços de carapaça, restos de ossos nunca ou raramente juntos e principalmente de animais menores, que são mais fáceis de se manter articulados”, explica D’Apolito Jr. “Encontrar animais grandes assim, bem preservados, foi uma surpresa.”

Esta nova descoberta abre portas para comparações cruciais com registros de outras localidades, como a Venezuela, que possui material mais completo da espécie. A esperança é finalmente decifrar se o exemplar acreano pertence à mesma espécie já conhecida ou se representa uma linhagem diferente, oferecendo novas perspectivas sobre a distribuição e evolução desses répteis gigantes.

A comparação com outros grandes répteis amazônicos, como o Purussaurus brasiliensis – um jacaré gigante cujo crânio completo foi encontrado em 1986 – ilustra a magnitude deste ecossistema pré-histórico. D’Apolito Jr. destaca as semelhanças contextuais: ambos os répteis viveram na mesma região e época, um período ambiental distintamente mais quente e úmido, caracterizado por lagos e rios de proporções gigantescas. Este cenário propício à vida aquática e terrestre propiciou o surgimento de linhagens colossais.

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Fonte: Jorge Carrillo

O Mioceno: Berço da Biodiversidade Amazônica

A era geológica do Mioceno (entre 23 milhões e 5 milhões de anos atrás) é amplamente reconhecida como um período de efervescência biológica, berço de inúmeras linhagens que hoje compõem a rica biodiversidade amazônica. “Quanto mais nos aprofundarmos nesse intervalo geológico, mais vamos entender como se formou a biodiversidade na Amazônia e como as mudanças climáticas causaram extinções e transformações na região”, pontua Hsiou, ressaltando a relevância da pesquisa para compreender não apenas o passado, mas também as dinâmicas atuais de um bioma em constante transformação.

Os Desafios da Expedição Boca dos Patos: Ciência na Fronteira

A jornada até Boca dos Patos não foi trivial. A equipe, composta por dez pesquisadores, cinco barqueiros e uma cozinheira, enfrentou um dia inteiro de navegação por um rio seco, onde a principal dificuldade era empurrar o barco em busca de trechos mais profundos. A logística apertada, com um prazo máximo de seis dias devido ao risco de o rio baixar ainda mais e inviabilizar o retorno, elevou a tensão da expedição. Contudo, o destino sorriu para os pesquisadores. “Tivemos uma sorte danada, porque esse fóssil foi encontrado no primeiro dia”, celebra D’Apolito Jr., um testemunho da paixão e resiliência inerentes à pesquisa de campo.

A coleta do material, após a descoberta, consumiu quatro dias intensos de escavação, preparação da “jaqueta” de gesso para a preservação do casco e o meticuloso transporte fluvial até Assis Brasil, uma viagem de sete horas de barco, seguida pelo transporte terrestre até a Universidade Federal do Acre, em Rio Branco. A urgência da ação era palpável: “Se a gente não tivesse encontrado a tempo, o material fatalmente teria sido perdido. Quando chove e o leito seco do rio alaga, a água vai levando tudo. Não sobraria nada ou muito menos do estado preservado em que encontramos a carapaça”, projeta o pesquisador.

O transporte da tartaruga exigiu criatividade e a colaboração inestimável dos barqueiros locais, em sua maioria ribeirinhos e moradores de Assis Brasil, que improvisaram uma base de madeira cortada na hora. Esta interação com as comunidades locais é, aliás, um dos pilares do projeto.

Conhecimento Compartilhado: A Ciência e os Guardiões da Floresta

A parceria com as comunidades locais é vital não apenas para a logística, mas também para a própria descoberta de novos fósseis e espécies. Muitas vezes, o conhecimento tradicional e originário dessas comunidades é a chave para desvendar segredos ancestrais. “Agora a gente pode trazer luz sobre o que realmente aconteceu na proto Amazônia e também compreender como é a relação desses povos com os fósseis”, afirma Hsiou.

Uma das propostas centrais do trabalho é vincular se aos moradores que detêm conhecimento de localidades fossilíferas, reconhecendo os como fontes valiosas de informação e oferecendo treinamento sobre a preservação do patrimônio paleontológico regional. “Já temos um certo conhecimento sobre o entendimento dos indígenas do Alto Rio Juruá com os fósseis”, conta a pesquisadora, destacando o profundo respeito e a devoção que essas comunidades nutrem pelos materiais encontrados às margens dos rios. A intenção é aprofundar a educação ambiental e a conscientização sobre a importância da preservação, tanto da biodiversidade presente quanto da pretérita. São essas comunidades, em essência, os verdadeiros guardiões desses locais.

Durante a expedição, a equipe também estabeleceu contato com a comunidade indígena da Aldeia dos Patos, o povo Manchineri. “Fomos pedir licença e mostrar que estávamos por ali. Não trabalhamos na terra indígena em si, mas eles foram lá acompanhar o nosso trabalho de escavação”, relata D’Apolito Jr., evidenciando o respeito e a ética na abordagem científica em territórios tradicionais.

O Futuro da Pesquisa: Da Amazônia Antiga à Nova Compreensão

O fóssil da Stupendemys geographicus foi cuidadosamente transportado para o campus sede da Universidade Federal do Acre, em Rio Branco, onde será submetido a análises científicas aprofundadas antes de integrar a valiosa coleção de fósseis da Ufac. Esta destinação cumpre uma das diretrizes cruciais do edital Expedições Científicas: a catalogação e o tombamento do material coletado em instituições amazônicas, garantindo a preservação do patrimônio local e fortalecendo a pesquisa regional.

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Imagem: Ufac/USP/Unicamp

“A coleção da Ufac tem quase 10 mil fósseis e a grande maioria foi descoberta em locais próximos. Com a ida a lugares mais remotos, a gente aumenta a chance de encontrar materiais que ainda não existem no acervo ou que, embora já conhecidos, estejam mais bem preservados e tragam mais informações taxonômicas”, comenta D’Apolito Jr. Esta expansão do conhecimento é fundamental para “entender melhor como era a Amazônia do passado, como a fauna e a flora evoluíram e se adaptaram às mudanças climáticas”.

O projeto prevê a exploração de outros rios no Acre e no sul do Amazonas, uma das principais unidades geológicas dentro da Formação Solimões. “Depois dessa supertartaruga, estamos com grande expectativa de achar fósseis muito mais interessantes nesses locais mais inóspitos e pouco explorados”, revela Hsiou, sinalizando um futuro promissor para a paleontologia na região.

A pesquisadora também enfatiza a importância da cooperação interinstitucional. Sua forte parceria com a Ufac, materializada em inúmeros artigos científicos e um foco contínuo na formação de recursos humanos, com intercâmbios entre estudantes da USP e da Ufac, é um exemplo brilhante de como a colaboração pode impulsionar a ciência e a compreensão de um patrimônio tão vasto e complexo quanto o da Amazônia. A descoberta da Stupendemys geographicus é mais do que um achado científico; é um marco que reafirma o Acre como um palco privilegiado para desvendar os capítulos perdidos da história natural do nosso planeta.

Fonte: Agência FAPESP