A Amazônia brasileira enfrenta uma pressão crescente de fazendas de gado ilegais que avançam sobre áreas protegidas, comprometendo a sobrevivência de comunidades tradicionais e pequenos agricultores. O relatório Gado Sujo, divulgado em outubro pela Human Rights Watch, revela como grileiros se apropriam de terras indígenas e assentamentos rurais, comercializando gado ilegal e colocando-o na cadeia produtiva nacional.

A análise detalhou a situação em dois locais emblemáticos: o PDS Terra Nossa, criado em 2006 pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), e a Terra Indígena Cachoeira Seca, no Pará. Historicamente, esses territórios preservavam florestas e ofereciam subsistência a comunidades locais por meio da coleta de castanhas, pesca e extrativismo sustentável. Hoje, parte significativa dessas áreas foi transformada em pastagem ilegal. Segundo o relatório, três quartos da área do PDS Terra Nossa estão ocupados irregularmente, e quase metade do assentamento perdeu a floresta original.
A pesquisadora da HRW, Luciana Téllez Chávez, detalhou que fazendeiros vendem gado para intermediárias, que repassam para grandes frigoríficos, inserindo ilegalmente o produto na cadeia de carne do país. Além disso, os agricultores do PDS Terra Nossa e os povos da TI Cachoeira Seca sofreram violência e intimidação. Entre 2019 e 2025, quatro pessoas foram mortas por se manifestarem contra as invasões, e uma liderança comunitária sobreviveu a uma tentativa de assassinato.

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O Incra afirmou que realiza uma “supervisão ocupacional” no assentamento e que existem mais de 50 ações judiciais em andamento para retomar áreas ocupadas irregularmente, muitas com liminares favoráveis à autarquia. No entanto, o avanço das fazendas ilegais continua pressionando a subsistência de agricultores e indígenas, prejudicando a caça, a pesca e a coleta de produtos florestais essenciais para o sustento e a cultura local.
A diretora adjunta de ciência do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), Patrícia Pinho, destaca que a situação não é isolada: “O relatório da Human Rights Watch mostra que a realidade de invasão e desmatamento permeia toda a Amazônia. O ponto de não retorno ecológico e social, que se esperava apenas para 2040 ou 2050, já está se manifestando hoje”.
O diretor da HRW no Brasil, César Muñoz, ressalta a importância da COP30, que ocorrerá no Pará, para discutir transição energética justa e proteção de direitos humanos. Segundo ele, o aumento da temperatura e as mudanças climáticas afetam o direito à vida, à saúde e à alimentação de comunidades amazônicas. Muñoz enfatiza que os planos climáticos nacionais precisam de metas concretas e cronogramas para reduzir impactos de forma urgente.
Entre as recomendações do relatório está a implementação de um mecanismo de rastreabilidade do gado, que dificultaria fraudes e impediria que fazendas ilegais comercializassem gado irregularmente. A HRW alerta que a medida precisa ser adotada por todos os estados, já que a “lavagem de gado” ultrapassa fronteiras estaduais. A entidade também recomenda que o governo federal retome rapidamente as terras ocupadas ilegalmente, processe judicialmente os responsáveis, restaure florestas degradadas e apoie os meios de subsistência sustentáveis das comunidades.
Além do Incra, a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), o Ministério da Agricultura e Pecuária, o Ministério dos Povos Indígenas e o Ministério do Meio Ambiente foram consultados sobre as invasões, mas ainda não se manifestaram oficialmente.
O relatório evidencia que, sem ação imediata, a Amazônia corre risco de perder não apenas biodiversidade, mas também direitos humanos e culturais que sustentam comunidades que vivem na floresta há gerações. A urgência é clara: proteger o bioma e seus habitantes exige políticas firmes e fiscalização contínua, antes que o dano se torne irreversível.









































