À medida que o Brasil enfrenta o desafio de descarbonizar sua matriz energética, a questão do gás fóssil emerge como um dos temas mais controversos. Frequentemente considerado um combustível de transição, o gás natural tem sido promovido como uma ponte entre os combustíveis fósseis mais poluentes, como o carvão e o petróleo, e as energias renováveis, como a solar e a eólica. No entanto, essa narrativa está longe de ser unânime. Enquanto alguns especialistas acreditam que o gás natural pode desempenhar um papel importante na redução das emissões globais de gases de efeito estufa a curto prazo, outros argumentam que ele pode se tornar uma armadilha ambiental, prolongando a dependência do Brasil e do mundo em relação aos combustíveis fósseis e adiando investimentos mais ambiciosos em energias limpas.
Neste capítulo da série “Energia 2045: Brasil a Caminho da Potência Ambiental”, analisaremos a posição do gás natural na matriz energética brasileira, os desafios que ele apresenta para as metas de descarbonização do país, e se ele pode realmente ser considerado uma solução viável para a transição energética. Vamos também discutir as implicações econômicas e ambientais do aumento da produção de gás no Brasil e avaliar o papel das infraestruturas de gás natural na transformação da matriz energética.
1. O Papel do Gás Natural na Matriz Energética Brasileira
O gás natural tem crescido em importância na matriz energética brasileira nos últimos anos. Atualmente, o gás corresponde a aproximadamente 9,6% da oferta total de energia no país, desempenhando um papel significativo tanto na geração de eletricidade quanto no fornecimento de energia para indústrias e residências. O Brasil possui reservas consideráveis de gás natural, especialmente nas bacias do pré-sal, o que tem gerado expectativas de que o país possa expandir ainda mais sua produção de gás nos próximos anos.
A produção doméstica de gás natural no Brasil aumentou de maneira constante, atingindo 137 milhões de metros cúbicos por dia (MMm³/d) em 2023, segundo a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP). O crescimento dessa produção tem sido impulsionado principalmente pela exploração das reservas do pré-sal, que contêm uma quantidade significativa de gás associado ao petróleo.
Além da produção doméstica, o Brasil também importa gás natural, principalmente da Bolívia e, em menor escala, por meio da importação de gás natural liquefeito (GNL) de outros países. As importações de GNL têm aumentado à medida que o Brasil busca diversificar suas fontes de energia e atender à demanda crescente, especialmente durante períodos de seca, quando a geração hidrelétrica é reduzida.
No entanto, embora o gás natural seja frequentemente promovido como uma solução para melhorar a segurança energética do país e reduzir as emissões de carbono em comparação com outros combustíveis fósseis, ele também apresenta uma série de desafios significativos que não podem ser ignorados.
2. Gás Natural: Um Combustível de Transição?
A ideia de que o gás natural pode servir como um combustível de transição está no centro das discussões sobre sua função na matriz energética global e no Brasil. Essa narrativa se baseia no argumento de que o gás natural é uma fonte de energia mais limpa do que o carvão e o petróleo, emitindo cerca de 50% menos dióxido de carbono (CO₂) do que o carvão e 30% menos do que o petróleo quando queimado para a geração de eletricidade. Isso torna o gás natural uma escolha aparentemente lógica para substituir essas fontes de energia mais poluentes enquanto o país investe no desenvolvimento e na expansão de tecnologias de energia renovável.
No Brasil, o gás natural tem sido utilizado principalmente para complementar a geração de energia elétrica durante períodos de baixa produção hidrelétrica, que é a principal fonte de eletricidade do país. Quando as chuvas são escassas e os níveis dos reservatórios das usinas hidrelétricas caem, as usinas termelétricas a gás são acionadas para suprir a demanda de energia, evitando o risco de apagões. Esse papel do gás como “backup” da matriz hidrelétrica tem sido uma das justificativas para aumentar a capacidade de geração a gás no Brasil.
Além disso, o gás natural é visto como uma opção viável para ajudar a descarbonizar setores da economia que são mais difíceis de eletrificar, como o setor industrial e o de transporte pesado. O gás natural também tem sido promovido como uma alternativa ao diesel e à gasolina para veículos de carga e transporte público em algumas regiões do Brasil.
No entanto, enquanto o gás natural emite menos CO₂ do que outros combustíveis fósseis, ele ainda é uma fonte significativa de emissões de carbono, especialmente quando se considera todo o ciclo de vida da produção e uso do gás. A extração, o processamento e o transporte de gás natural podem resultar em emissões de metano (CH₄), um gás de efeito estufa com um potencial de aquecimento global 25 vezes maior do que o CO₂ em um horizonte de 100 anos. Mesmo pequenas quantidades de metano liberadas durante a produção ou vazamentos em oleodutos e gasodutos podem anular os benefícios climáticos do gás natural em relação ao carvão ou petróleo.
3. O Desafio das Emissões de Metano
Um dos principais desafios do uso de gás natural como combustível de transição é a emissão de metano, um dos gases de efeito estufa mais potentes. Embora o metano tenha um ciclo de vida mais curto na atmosfera do que o dióxido de carbono, ele tem um impacto significativamente maior no aquecimento global durante os primeiros 20 anos após sua liberação. Isso torna a captura e o controle das emissões de metano uma prioridade para qualquer plano que envolva o uso contínuo de gás natural.
No Brasil, a maior parte do gás natural produzido é “gás associado”, ou seja, gás que é extraído junto com o petróleo durante a exploração de campos de petróleo no pré-sal. Esse gás é frequentemente reinjetado de volta nos reservatórios para aumentar a pressão e maximizar a produção de petróleo. No entanto, a reinjeção nem sempre é possível ou economicamente viável, e, em alguns casos, o gás natural é simplesmente queimado (um processo conhecido como flaring) ou liberado diretamente na atmosfera, o que resulta em emissões de metano.
O flaring tem sido amplamente criticado por ambientalistas como uma prática altamente poluente. Embora queimar gás natural seja preferível à liberação direta de metano, ainda resulta em emissões de CO₂, além de representar um desperdício de uma fonte valiosa de energia. No pré-sal brasileiro, onde as reservas de gás são abundantes, o governo e as empresas petrolíferas enfrentam o desafio de como utilizar esse gás de maneira eficiente e segura, sem contribuir para o aumento das emissões de gases de efeito estufa.
Em 2021, o Brasil se juntou à Global Methane Pledge, um compromisso internacional para reduzir as emissões de metano em 30% até 2030. No entanto, a implementação dessas metas tem sido um desafio, e as práticas de monitoramento e controle de emissões de metano no setor de gás natural ainda precisam ser fortalecidas. Para que o gás natural possa ser considerado uma opção viável na transição energética, será necessário investir em tecnologias de captura e monitoramento de metano, bem como em regulamentações mais rígidas para minimizar as emissões em todas as etapas do ciclo de vida do gás.
4. Infraestrutura de Gás: Um “Lock-in” para Combustíveis Fósseis?
Uma das preocupações mais prementes com o aumento do uso de gás natural como combustível de transição é o risco de criar um “lock-in” de infraestrutura de combustíveis fósseis. Esse conceito refere-se à situação em que grandes investimentos em infraestrutura de gás natural, como terminais de GNL, gasodutos e usinas termelétricas, tornam mais difícil e caro abandonar o uso de combustíveis fósseis no futuro.
No Brasil, o governo tem promovido o aumento da infraestrutura de gás como parte do programa Novo Mercado de Gás, lançado em 2019. O objetivo do programa é aumentar a competição no setor de gás natural, reduzir os preços e atrair novos investimentos para a expansão da infraestrutura de gás no país. Isso inclui a construção de novos gasodutos, terminais de GNL e a conversão de usinas térmicas a óleo para usinas movidas a gás.
Esses investimentos em infraestrutura de gás têm sido apresentados como uma forma de aumentar a segurança energética do Brasil, especialmente em tempos de crise hídrica, e de garantir um fornecimento estável e acessível de energia. No entanto, críticos argumentam que esses investimentos podem resultar em ativos encalhados no futuro, à medida que o mundo avança para uma economia de baixo carbono e a demanda por gás natural diminui.
Além disso, o custo de manter e operar essa infraestrutura de gás pode desviar recursos que poderiam ser melhor utilizados no desenvolvimento de energias renováveis e na expansão de tecnologias de armazenamento de energia, como baterias, que são essenciais para integrar fontes intermitentes de energia, como a solar e a eólica, na matriz energética.
Um estudo publicado pelo Climate Policy Initiative (CPI) em 2022 mostrou que os investimentos em infraestrutura de gás natural no Brasil poderiam comprometer as metas de descarbonização do país e prolongar a dependência de combustíveis fósseis até meados do século. O estudo concluiu que, para que o Brasil alcance suas metas de emissões líquidas zero até 2050, será necessário limitar novos investimentos em infraestrutura de gás e priorizar o desenvolvimento de energias renováveis.
5. Alternativas ao Gás Natural
Embora o gás natural seja promovido como uma solução de curto prazo para os desafios energéticos do Brasil, há uma série de alternativas renováveis que podem desempenhar um papel crucial na descarbonização da matriz energética do país, sem os mesmos impactos ambientais associados ao gás fóssil.
A energia solar e a energia eólica têm se mostrado alternativas viáveis e de rápido crescimento no Brasil. Entre 2019 e 2023, o Brasil experimentou uma expansão significativa na capacidade instalada de energia solar, especialmente em sistemas de geração distribuída, como painéis solares em telhados residenciais e comerciais. A energia eólica, por sua vez, tem se consolidado como uma das fontes mais competitivas de eletricidade no país, com parques eólicos no Nordeste atingindo níveis de geração recorde.
Essas fontes renováveis não apenas reduzem as emissões de gases de efeito estufa, mas também são mais seguras em termos ambientais e econômicos. Além disso, o Brasil tem um enorme potencial de hidrogênio verde, que pode ser produzido a partir da eletrólise da água usando energia renovável. O hidrogênio verde é uma alternativa promissora ao gás natural em setores industriais de difícil eletrificação, como a siderurgia e a produção de fertilizantes.
Outra solução promissora é o uso de biogás e biometano, que são combustíveis renováveis derivados de resíduos orgânicos, como dejetos agrícolas, resíduos sólidos urbanos e esgoto. O Brasil, com sua vasta produção agrícola, tem um enorme potencial para gerar biogás a partir de resíduos, o que não só ajuda a reduzir as emissões de metano na agricultura, mas também oferece uma fonte de energia renovável para substituir o gás natural em diversas aplicações.
Investir nessas alternativas é crucial para garantir que o Brasil não fique preso a uma dependência prolongada de gás fóssil e possa avançar rapidamente em direção a uma matriz energética totalmente descarbonizada.
6. O Futuro do Gás Natural no Brasil
O futuro do gás natural no Brasil está intimamente ligado às decisões políticas e econômicas que o país tomará nos próximos anos. Se o Brasil continuar a expandir sua infraestrutura de gás e depender fortemente desse combustível para garantir sua segurança energética, corre o risco de se afastar de suas metas de descarbonização e de prolongar sua dependência de combustíveis fósseis.
Por outro lado, se o Brasil adotar uma abordagem mais equilibrada, limitando novos investimentos em gás natural e priorizando o desenvolvimento de energias renováveis, o gás pode desempenhar um papel como um combustível de transição genuíno, mas temporário, à medida que o país avança em direção a uma matriz energética mais limpa e sustentável.
Uma transição energética bem-sucedida exigirá uma combinação de políticas que incentivem a eficiência energética, o uso de fontes renováveis e a descarbonização de setores difíceis de eletrificar. O gás natural pode ter um papel a desempenhar nessa transição, mas deve ser cuidadosamente regulado e monitorado para garantir que não se torne um obstáculo no caminho para um futuro de baixo carbono.
7. Gás Natural – Solução Temporária ou Problema Duradouro?
O gás natural está no centro de uma das questões mais importantes sobre o futuro energético do Brasil. Embora tenha sido amplamente promovido como uma solução de transição, os riscos ambientais, econômicos e sociais associados ao uso contínuo de gás fóssil são significativos. O aumento das emissões de metano, o risco de “lock-in” de infraestrutura de combustíveis fósseis e o desvio de recursos que poderiam ser investidos em energias renováveis são apenas alguns dos desafios que o Brasil enfrenta ao lidar com sua dependência crescente de gás natural.
Para que o Brasil consiga atingir suas metas de descarbonização e se tornar uma potência ambiental até 2045, será necessário repensar o papel do gás natural na matriz energética e investir em alternativas mais limpas e sustentáveis. A transição para uma economia de baixo carbono é possível, mas exigirá escolhas corajosas e uma visão de longo prazo que priorize o bem-estar do planeta e das futuras gerações.
Nos próximos capítulos, continuaremos a explorar as políticas e tecnologias necessárias para que o Brasil avance na transição energética e atinja suas metas de redução de emissões, garantindo uma transição justa e inclusiva para todos os seus cidadãos.