Ao revisitar um fóssil encontrado em uma pedreira de Rio Verde de Mato Grosso, pesquisadores brasileiros e internacionais conseguiram iluminar um capítulo extremamente antigo da história da vida terrestre. O que parecia ser apenas mais um fragmento da paisagem fóssil revelou, após quatro anos de investigação, o que hoje é considerado o primeiro líquen conhecido no registro geológico: o Spongiophyton, organismo que viveu há cerca de 410 milhões de anos e pode ter desempenhado papel essencial na formação dos primeiros solos e na consolidação dos ecossistemas terrestres.

O estudo, publicado como capa da revista Science Advances, envolveu cientistas de 19 instituições e contou com participação da Universidade de São Paulo (USP), do Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM) e apoio da FAPESP. A descoberta também lança nova luz sobre a capacidade dos liquens — organismos simbióticos formados por fungos e algas — de remodelar paisagens e desempenhar funções ecológicas profundamente transformadoras.
A investigação começou com uma pergunta antiga e ainda sem resposta: afinal, que tipo de organismo era o Spongiophyton, recorrente no registro fóssil do período Devoniano? Por décadas, paleontólogos divergiram se se tratava de uma planta, de um fungo solitário ou de um líquen ancestral. Foi preciso combinar tecnologias de ponta disponíveis no Sirius, a fonte de luz síncrotron de última geração operada pelo Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS), com métodos tradicionais da paleontologia para finalmente resolver o enigma.
Bruno Becker-Kerber, primeiro autor do estudo e pesquisador formado no Instituto de Geociências da USP e no CNPEM, conta que as linhas de luz do Sirius permitiram explorar o fóssil em escalas micrométricas e nanométricas. Em uma dessas técnicas, alcançou-se resolução de 170 nanômetros — nível suficiente para identificar redes de hifas, células de algas e possíveis estruturas reprodutivas, exatamente os elementos que caracterizam um líquen moderno.
Essas imagens em três dimensões, complementadas por análises químicas, revelaram um forte sinal de nitrogênio — típico de organismos ricos em quitina, o principal componente estrutural dos fungos e também das cascas de insetos. Em plantas, por outro lado, o elemento predominante seria a celulose, sem esse padrão químico. A presença adicional de micropartículas de cálcio semelhantes às produzidas por liquens atuais como proteção solar reforçou a conclusão.
Jochen Brocks, da Universidade Nacional da Austrália, um dos coautores, afirmou que raramente se obtém uma evidência tão robusta e direta para caracterizar um organismo tão antigo. Sob múltiplas linhas de análise, o Spongiophyton revelou-se não apenas um líquen, mas possivelmente a primeira linhagem desse grupo a colonizar superfícies terrestres.

SAIBA MAIS: Líderes em Belém traçam nova era para combustíveis fósseis, florestas e financiamento
Nathaly Archilha, pesquisadora do LNLS, explicou que os resultados só foram possíveis graças ao uso conjunto de tecnologias experimentais complementares. As medições em macroescala guiaram a equipe para as regiões-chave do fóssil, enquanto as análises em nanoscala permitiram identificar estruturas que, até então, estavam além das possibilidades técnicas de estudos anteriores.
Mas a história dessa descoberta também é profundamente humana. Foi o pai de Becker-Kerber, Gilmar Kerber — entusiasta da paleontologia e hoje pesquisador na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) e aposentado do Ibama — quem encontrou o fragmento fossilizado ao partir uma rocha em campo. A cena, comum em viagens que pai e filho realizam há anos, acabou abrindo janela para um passado remoto no qual os continentes ainda formavam o supercontinente Gondwana.
A região onde o fóssil foi descoberto corresponde, segundo o estudo, a zonas frias do antigo Gondwana. A evidência sugere que os primeiros liquens não ocupavam apenas nichos marginais, como se acreditava, mas eram pioneiros ecológicos com papel decisivo na transição da vida da água para a terra. Dissolvendo rochas, retendo umidade e produzindo biomassa, esses organismos ajudaram a formar solos primitivos — base indispensável para o surgimento de vegetação complexa, florestas e campos.
Becker-Kerber resume o impacto da descoberta ao lembrar que liquens modernos continuam alterando substratos rochosos, contribuindo para ciclos ecológicos vitais. Se hoje esses organismos são fundamentais na formação de habitats, sua importância teria sido ainda maior há 410 milhões de anos, momento em que os ecossistemas terrestres davam seus primeiros passos.
O estudo, portanto, não apenas redefine o lugar do Spongiophyton na árvore da vida, mas oferece pistas sobre como a Terra se tornou habitável para a diversidade biológica que hoje conhecemos. Cada camada analisada do fóssil é também uma camada da história do planeta — e o líquen ancestral agora reconhecido ajudou a escrever um dos seus capítulos mais fundamentais.














































