O Brasil está dando passos decisivos para a criação de um mercado regulado de carbono, com a lei sancionada em dezembro passado. No entanto, sua regulamentação e implementação ainda levarão anos, o que significa uma longa espera até que o sistema de comércio de emissões esteja funcionando plenamente. Enquanto isso, o país já conta com uma experiência relevante nesse campo: o RenovaBio.
Criação do RenovaBio
Criado em 2017, o RenovaBio é um programa que visa incentivar a descarbonização da matriz energética brasileira, focando no setor de combustíveis. Ele utiliza um sistema de créditos de descarbonização, os chamados CBIOs, que são comprados por distribuidoras de combustíveis fósseis e vendidos por produtores de biocombustíveis.
Entretanto, passados cinco anos de sua implementação, o RenovaBio ainda enfrenta desafios significativos. Desde a volatilidade dos preços dos CBIOs até a inadimplência de algumas distribuidoras, o programa expôs as dificuldades práticas de transformar um mecanismo teórico de mercado em uma ferramenta efetiva para a transição energética.
Os desafios enfrentados pelo RenovaBio podem fornecer lições importantes para a construção do novo mercado regulado de carbono, que deve abranger cerca de 5 mil das empresas mais poluentes do país. Mas, para isso, é preciso entender o que tem dado errado – e o que pode ser feito para corrigir o rumo.
Como Funciona o RenovaBio
A lógica do RenovaBio é relativamente simples: as distribuidoras de combustíveis fósseis são obrigadas a comprar CBIOs para compensar suas emissões de carbono, enquanto as usinas certificadas de biocombustíveis podem emitir e vender esses créditos. Cada CBIO equivale a uma tonelada de CO2 que deixou de ser emitida ao substituir combustíveis fósseis por biocombustíveis, como etanol ou biodiesel.
O Conselho Nacional de Política Energética (CNPE) estabelece uma meta nacional de aquisição de CBIOs, que aumenta progressivamente a cada ano. Esse total é dividido pela Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) entre as distribuidoras, conforme a participação de cada uma no mercado de combustíveis fósseis. Assim, as empresas que mais comercializam combustíveis poluentes são as que mais precisam adquirir créditos de descarbonização.
Para 2025, a meta preliminar é de 40,39 milhões de CBIOs. As três principais compradoras serão Vibra (22,6%), Ipiranga (17,5%) e Raízen (16,4%).
Em tese, esse sistema deveria encarecer progressivamente os combustíveis fósseis e tornar mais vantajoso o uso de biocombustíveis. No entanto, a implementação prática tem sido repleta de dificuldades.
Metas Flutuantes e Inadimplência no Mercado
Um dos principais problemas do RenovaBio é a instabilidade das metas estabelecidas. Ao longo dos anos, a ANP já alterou e prorrogou metas diversas vezes, gerando incerteza no mercado. Para investidores e produtores de biocombustíveis, isso compromete a previsibilidade do programa e desestimula novos investimentos no setor.
Além disso, a inadimplência no cumprimento das metas tem sido crescente. Embora as grandes distribuidoras, como Vibra e Ipiranga, estejam comprando CBIOs conforme suas obrigações, muitas empresas menores não estão cumprindo suas metas. Isso cria uma situação desigual no mercado: enquanto algumas distribuidoras arcam com os custos de compensação, outras simplesmente ignoram suas obrigações sem sofrer consequências imediatas.
Essa disparidade levou Vibra e Ipiranga a ameaçarem recorrer à Justiça no ano passado para questionar a obrigatoriedade de compra de CBIOs. Embora a ação não tenha se concretizado, a insegurança gerada no mercado foi suficiente para derrubar os preços dos CBIOs, que caíram de R$ 116,92 em janeiro de 2024 para R$ 65,82 em junho do mesmo ano.
A Nova Lei e o Aperto na Regulação
Em resposta à crescente inadimplência e à instabilidade do mercado, o governo sancionou em dezembro de 2024 a lei 15.082/2024, que endurece as penalidades para distribuidoras que não cumprem suas metas.
A nova legislação estabelece que o descumprimento das obrigações passará a ser considerado crime ambiental, sujeitando empresas e seus dirigentes a penas que variam entre detenção de um a três anos e multas de R$ 100 mil a R$ 500 milhões, proporcionais à quantidade de CBIOs não adquiridos.
Além disso, a lei determina que produtores e comercializadores de combustíveis – tanto fósseis quanto renováveis – não poderão vender seus produtos para distribuidoras inadimplentes. Essa mudança é vista como uma das mais eficazes para forçar o cumprimento das metas.
De acordo com Boris Gancev, especialista em commodities do Banco Santander, a nova regra “fecha a torneira” para as distribuidoras inadimplentes, garantindo que o programa seja mais respeitado. Desde a aprovação da lei, o Santander – principal escriturador de CBIOs do país – já observou um aumento na demanda por créditos de descarbonização.
A Persistente Incerteza Sobre os Preços dos CBIOs
Embora a nova legislação tenha endurecido as regras para inadimplentes, um problema estrutural do RenovaBio ainda persiste: a falta de previsibilidade dos preços dos CBIOs.
As metas nacionais de aquisição de CBIOs são projetadas para os próximos dez anos, até 2033, mas podem ser revistas anualmente. Isso significa que, dependendo de fatores como a oferta de biocombustíveis, as metas podem ser alteradas, afetando diretamente a demanda pelos créditos e seus preços.
Outro fator que impacta o preço dos CBIOs é a decisão das usinas de cana-de-açúcar. Se os preços do açúcar estiverem mais vantajosos, os produtores podem optar por destinar mais matéria-prima para a produção de açúcar, reduzindo a oferta de etanol e, consequentemente, a emissão de CBIOs. Esse comportamento cíclico aumenta a volatilidade do mercado e compromete sua eficiência como ferramenta de incentivo à transição energética.
Hoje, a venda de CBIOs representa, em média, apenas 2% da receita das usinas de etanol, o que é insuficiente para que elas alterem significativamente suas estratégias de produção. Para cada CBIO gerado, uma usina precisa vender cerca de 850 litros de etanol hidratado. Isso significa que, na prática, os CBIOs ainda não são um fator determinante na decisão dos produtores.
O Futuro do Mercado de Carbono no Brasil
Apesar de suas falhas, o RenovaBio é considerado um programa exitoso em muitos aspectos, pois conseguiu estabelecer uma estrutura inicial para um mercado de carbono no Brasil. No entanto, suas dificuldades evidenciam os desafios que o futuro mercado regulado de carbono enfrentará.
Se o novo sistema de comércio de emissões quiser evitar os mesmos problemas, será essencial garantir metas estáveis, sanções efetivas para o descumprimento das obrigações e previsibilidade nos preços dos créditos de carbono.
Para isso, especialistas sugerem a criação de mecanismos de ajuste automático de metas, garantindo que elas sejam suficientemente rígidas para impulsionar a transição energética, mas não tão instáveis a ponto de gerar insegurança no mercado. Além disso, uma maior integração entre políticas climáticas e tributárias pode ajudar a tornar o sistema mais eficiente e previsível.
À medida que o Brasil se prepara para entrar no mercado global de carbono, a experiência do RenovaBio oferece lições valiosas. Se essas lições forem aplicadas, o país pode se tornar um dos líderes na implementação de mecanismos de mercado para a descarbonização. Caso contrário, os desafios enfrentados hoje pelo RenovaBio podem se repetir em uma escala ainda maior no novo mercado regulado.
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