Moradia precária marca áreas protegidas na Amazônia Legal


Nas expansivas regiões da Amazônia Legal, onde florestas e rios guardam saberes ancestrais e modos de vida milenares, encontra-se uma realidade que contrasta com o discurso de preservação. Um levantamento recente do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) revelou que as pessoas que vivem em unidades de conservação ambiental, terras indígenas e territórios quilombolas na Amazônia Legal enfrentam condições de moradia muito mais precárias do que a média nacional — e, em muitos casos, do que similares em outras regiões do Brasil.

Fernando Frazão/Agência Brasil

O estudo analisou 1.053 áreas protegidas na Amazônia Legal — entre elas 430 unidades de conservação ambiental, 378 terras indígenas e 245 territórios quilombolas — que juntas cobrem quase metade da extensão da região. O levantamento foi divulgado no contexto da COP30, em Belém, o que reforça o vínculo entre as discussões climáticas globais e as condições quotidianas que persistem nos territórios mais vulneráveis da floresta.

Os números são contundentes. Em unidades de conservação ambiental na Amazônia Legal, 75,19% dos moradores viviam em lares com algum tipo de precariedade nos serviços básicos de água, esgoto ou coleta de lixo — quase três vezes a média nacional de 27,28%. Em cerca de 22% desses domicílios coexistem simultaneamente falhas no abastecimento de água, esgoto e gestão de lixo — frente a 3% da população brasileira como um todo.

Quando olhamos para as terras indígenas na Amazônia Legal, o cenário se agrava ainda mais: 98,04% dos moradores convivem com alguma precariedade nessas três dimensões básicas — para efeito de comparação, em terras indígenas de todo o país o índice é 92,75%. Aproximadamente 75,05% dos moradores de terras indígenas nessa região viviam em lares que tinham simultaneamente os três tipos de falha — número bem acima dos 58,09% identificados nacionalmente.

Nos territórios quilombolas da Amazônia Legal, o padrão se repete — 96,90% das pessoas enfrentam ao menos uma condição de precariedade, frente a 85,89% da média nacional para esse tipo de área. Cerca de 36,55% residem em moradias onde água, esgoto e lixo apresentam falhas simultâneas — comparado a 28,19% no conjunto dos territórios quilombolas brasileiros.

Esses dados não apenas apontam para desigualdades: revelam que a condição de viver em áreas protegidas não significa necessariamente acesso garantido a serviços básicos, mesmo quando essas zonas deveriam contar com políticas públicas prioritárias. A analista do IBGE Marta de Oliveira Antunes observa: “as regiões mais isoladas dificultam a chegada de infraestrutura, mas há ainda falta de investimento adaptado para essas realidades mais rurais e remotas.”

A alfabetização também traz desvantagem. Entre moradores de unidades de conservação ambiental na Amazônia Legal a taxa de alfabetização era de 87,08% — abaixo da média nacional nas mesmas categorias: 91,16% para unidades de conservação de todo o país, e 93% para a população como um todo. Já nas terras indígenas da região, a taxa caiu para 77,25%, frente a 79,44% do total nacional em terras indígenas.

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Foto – CNN Brasil

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Quando se considera o território como eixo da crise climática e ambiental, esses números ganham ainda mais peso. Aquela história de “proteger a floresta” não pode obscurecer a vida humana que persiste nos limites desse mesmo território. A falta de saneamento ou abastecimento adequado, por exemplo, aumenta a vulnerabilidade às doenças, às mudanças de regime hídrico, às enchentes ou secas — fatores que reverberam diretamente na adaptação às mudanças climáticas.

Em outras palavras: a justiça climática exige olhar para dentro das áreas protegidas tanto quanto para proteger as florestas. Porque se o discurso ambiental ignora a vida que habita ali, se a política de conservação separa a natureza das pessoas, a transição se torna excludente. O estudo do IBGE expõe justamente isso — que proteger nem sempre significa prover, e que há uma contradição grave quando territórios reconhecidos por sua importância ecológica vivem com falhas estruturais persistentes.

O momento de divulgação também importa: durante a COP30, quando líderes, negociadores e atores globais falam de neutralidade, desmatamento, financiamento climático, é preciso lembrar que nem tudo se resume a metrica global. A vida nas margens da Amazônia — das comunidades indígenas, quilombolas e habitantes de unidades de conservação — espera por infraestrutura básica, por dignidade e inclusão. E isso não aparece em metas de carbono ou em metas de área preservada: aparece na torneira que não corre, no esgoto sem destino certo, no lixo que se acumula ou no agravamento da crise sanitária.

Para que os compromissos assumidos em conferências internacionais realmente toquem realidades vulneráveis, é imprescindível que se façam sinergias entre conservação ambiental, direitos humanos e desenvolvimento local. A ambição climática que ignora essas franjas corre o risco de perpetuar desigualdades — de fato, fazer da proteção da Amazônia um exercício simbólico enquanto muitos de seus habitantes vivem em condições de precariedade extrema.

Em último caso, o estudo do IBGE serve como alarme: reafirma que áreas protegidas não são sinônimo automático de qualidade de vida, e que permanecem lacunas persistentes no acesso a serviços essenciais. Que a Amazônia Legal — territórios apresentados como corredores de biodiversidade e mitigação climática — seja também escada para os seus habitantes, e não bloqueio ao seu bem-estar. Só assim será possível transformar a preservação em prosperidade, e a conservação em justiça.