O aumento das temperaturas globais pode dobrar o número de mortes causadas pelo calor nas próximas duas décadas, segundo uma nova análise conduzida pelo projeto Mudanças Climáticas e Saúde Urbana na América Latina (Salurbal-Clima). O levantamento, publicado na revista científica Environment International, avaliou dados de 326 cidades em nove países da região e acende um alerta sobre os riscos que o aquecimento global representa para a saúde pública — especialmente para idosos e populações em situação de vulnerabilidade.

Hoje, o calor já responde por cerca de 1 em cada 100 mortes na América Latina. Mantidos os atuais padrões de aquecimento e envelhecimento populacional, essa proporção pode ultrapassar 2% até meados da década de 2050, mesmo em cenários moderados, com aumento de temperatura entre 1 °C e 3 °C.
A pesquisa reuniu cientistas da Universidade de São Paulo (USP), da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP), e de instituições de países como Argentina, Chile, México, Costa Rica, Panamá e Peru, entre outros, integrados por uma rede internacional coordenada pelo Salurbal — iniciativa sediada na Drexel University, nos Estados Unidos.
O risco invisível das ondas de calor
“O calor extremo é uma ameaça silenciosa”, alerta o epidemiologista Nelson Gouveia, professor do Departamento de Medicina Preventiva da FMUSP e um dos autores do estudo. Segundo ele, as mortes diretas são apenas a face mais visível de uma crise que afeta profundamente o corpo humano. “O calor intenso aumenta o risco de infartos, insuficiência cardíaca e agrava doenças crônicas, principalmente em pessoas idosas e em quem vive em condições precárias”, explica.
As populações mais afetadas são aquelas que vivem em periferias urbanas, em moradias mal ventiladas, sem acesso a ar-condicionado, sombra ou áreas verdes. Nessas regiões, o fenômeno das “ilhas de calor” — onde a temperatura é significativamente maior que em áreas com vegetação — potencializa o perigo, criando uma combinação explosiva entre pobreza, urbanização desordenada e mudanças climáticas.
Projeções para o Brasil e envelhecimento populacional
No Brasil, os pesquisadores analisaram dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) e do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), com base no DataSUS e nos censos demográficos. As conclusões indicam que as mortes relacionadas a temperaturas extremas — tanto por calor quanto por frio — tendem a crescer fortemente nas próximas décadas.
Um fator-chave é o envelhecimento da população: o Brasil terá um número recorde de pessoas acima de 65 anos entre 2045 e 2054, justamente o grupo mais vulnerável a ondas de calor. O avanço dessa faixa etária amplia a pressão sobre o sistema de saúde e exige políticas preventivas de longo prazo.

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Prevenção: adaptar cidades e salvar vidas
Os pesquisadores afirmam que parte significativa dessas mortes pode ser evitada se governos locais implementarem planos de adaptação climática que priorizem os grupos mais vulneráveis. Isso inclui ações como:
sistemas de alerta precoce, com comunicação acessível sobre riscos e cuidados em dias de calor extremo;
expansão de áreas verdes e corredores de ventilação urbana, para reduzir as ilhas de calor;
protocolos de saúde pública para atendimento prioritário de idosos e pessoas com doenças crônicas;
campanhas educativas sobre hidratação, alimentação leve e sinais de exaustão térmica;
e infraestrutura urbana adaptada, como abrigos públicos e centros de resfriamento.
Cidades como o Rio de Janeiro já adotaram medidas específicas para o monitoramento de temperaturas e atendimento prioritário em hospitais e unidades de emergência, servindo como exemplo regional de mitigação dos efeitos das ondas de calor sobre a saúde.
Calor, pobreza e desigualdade
Mais do que um problema climático, o calor extremo expõe desigualdades sociais e econômicas. Quem tem acesso a ar-condicionado, água potável e moradias adequadas enfrenta melhor as altas temperaturas. Já quem vive nas margens, sem esses recursos, sofre desproporcionalmente.
A vulnerabilidade se soma à falta de políticas públicas e de planejamento urbano adaptativo. O estudo mostra que, em cidades com infraestrutura verde — árvores, parques, rios limpos —, a mortalidade por calor é sensivelmente menor. Isso reforça que políticas ambientais também são políticas de saúde.
Evidências para políticas públicas
O Salurbal-Clima, com duração de cinco anos (2023-2028), busca justamente fortalecer a base científica para orientar governos e instituições na formulação de estratégias de mitigação e adaptação. Ao integrar dados de nove países latino-americanos, o projeto cria uma visão continental dos impactos climáticos sobre a saúde e fornece indicadores comparáveis que podem embasar decisões urgentes.
As conclusões são claras: sem ações coordenadas, as mortes por calor vão dobrar. Com adaptação, planejamento e investimentos em infraestrutura verde, parte considerável delas pode ser evitada.
O que está em jogo não é apenas o futuro do clima, mas a capacidade das cidades latino-americanas de proteger suas populações diante de um planeta cada vez mais quente.
Acesse aqui o estudo por completo.










































