A multinacional finlandesa Outokumpu, um dos maiores nomes no setor de aço inoxidável, anunciou o rompimento de sua parceria comercial com a mineradora brasileira Vale, interrompendo a compra de níquel produzido na mina Onça Puma, localizada no sudeste do Pará. A decisão ocorreu em meio a acusações de que as operações da mina estariam contaminando o rio Cateté, um curso d’água vital para a Terra Indígena Xikrin e os cerca de 2 mil indígenas que dependem dele para sua subsistência.
O caso foi detalhado no relatório “Em busca de justiça”, publicado pela organização finlandesa Finnwatch, que monitora violações de direitos humanos em cadeias produtivas globais. A decisão da Outokumpu marca um precedente importante, destacando a pressão crescente sobre empresas para que adotem práticas comerciais alinhadas aos padrões éticos e ambientais.
O Papel do Rio Cateté na Vida dos Xikrin
O rio Cateté é mais do que uma fonte de água para o povo indígena Xikrin: ele é o eixo central de sua cultura, alimentação e tradições. Por décadas, o rio forneceu peixe, água potável e serviu como um espaço sagrado para práticas tradicionais. No entanto, relatos e estudos recentes apontam que a contaminação por metais pesados tornou o rio inutilizável.
Segundo indígenas ouvidos pela Repórter Brasil e pela Finnwatch, o Cateté já não pode ser utilizado para pesca ou consumo. “O rio está morto,” afirmou um Xikrin sob anonimato. “Era onde pegávamos água e comida. Agora não temos mais nada.”
O impacto ambiental também compromete a saúde da população local. Estudos conduzidos pelo Grupo de Tratamento de Minérios, Energia e Meio Ambiente (GTEMA), da Universidade Federal do Pará (UFPA), em 2020, confirmaram níveis alarmantes de contaminação por metais como chumbo, mercúrio, alumínio e manganês. Todos os indivíduos analisados apresentaram contaminação por ao menos um metal pesado.
A mudança no modo de vida forçada pela poluição tem levado os Xikrin a abandonar práticas tradicionais de caça e pesca, tornando-se dependentes de alimentos industrializados fornecidos pela Vale como compensação. Essa transformação, segundo relatos, resultou em problemas de saúde como obesidade e diabetes, ampliando a vulnerabilidade das comunidades indígenas.
Responsabilidade da Vale: Negação e Conflitos
A mineradora Vale, que opera a mina Onça Puma por meio de sua subsidiária Vale Base Metals (VBM), nega qualquer ligação direta entre suas atividades e a contaminação do rio Cateté. Em nota, a empresa atribuiu a poluição a fatores como a mineralização natural da região e ao uso de agrotóxicos em áreas próximas.
Embora a Vale reconheça que medições realizadas entre 2005 e 2023 apontaram concentrações de poluentes acima dos limites legais, a mineradora sustenta que não há nexo causal comprovado entre sua operação e os níveis de metais pesados no rio. A empresa baseia sua defesa em um relatório de 2017, encomendado pela Justiça, que concluiu pela ausência de evidências suficientes para responsabilizar a mina.
A relação entre a Vale e os Xikrin tem sido marcada por conflitos desde 2011, quando os indígenas questionaram a falta de consulta no processo de licenciamento ambiental da mina. Apesar de acordos judiciais terem garantido indenizações financeiras à comunidade, a questão da contaminação ambiental permanece sem solução definitiva.
Decisão da Outokumpu e Pressão Internacional
A Outokumpu foi a primeira empresa a romper laços comerciais com a Vale devido às acusações relacionadas à mina Onça Puma. Segundo Sonja Finér, diretora-executiva da Finnwatch, a decisão reflete uma mudança significativa na postura da multinacional em relação à responsabilidade socioambiental.
“A Outokumpu fez um movimento importante ao priorizar os direitos humanos e a sustentabilidade em sua cadeia de valor,” afirmou Finér. Ela também destacou que outras multinacionais continuam comprando níquel da mina, incluindo empresas de países como Itália, Suécia, Grã-Bretanha, França e China.
O relatório da Finnwatch exorta clientes globais da Vale a seguirem o exemplo da Outokumpu, adotando políticas que incentivem a mineradora a mitigar os danos causados ao meio ambiente e às comunidades indígenas. A organização também recomendou que a Vale implemente um plano de recuperação ambiental com a participação ativa dos Xikrin, incluindo ações para limpar o rio Cateté e restaurar a confiança entre as partes.
Impacto no Mercado Global de Níquel
O níquel produzido em Onça Puma é amplamente utilizado na fabricação de aço inoxidável e baterias recarregáveis, produtos essenciais para setores como automotivo e eletrônico. A operação da mina desempenha um papel estratégico na cadeia de suprimentos global, e o rompimento da Outokumpu sinaliza um potencial impacto nas relações comerciais da Vale com outros compradores.
Apesar disso, especialistas afirmam que a interrupção de contratos pode ser uma oportunidade para que a mineradora adote práticas mais alinhadas às exigências de sustentabilidade do mercado internacional. A crescente demanda por metais “verdes”, produzidos de forma ética e com baixo impacto ambiental, já pressiona empresas a se adaptarem a padrões mais rigorosos.
Perspectivas para a Sustentabilidade e Justiça
O caso da mina Onça Puma reflete um desafio maior enfrentado por grandes mineradoras que operam em regiões ambientalmente sensíveis: equilibrar a exploração de recursos naturais com a preservação do meio ambiente e o respeito aos direitos das comunidades locais.
A Finnwatch defende que o governo brasileiro desempenhe um papel mais ativo na fiscalização de atividades mineradoras e na proteção de territórios indígenas. Além disso, a organização enfatiza a necessidade de maior engajamento da comunidade internacional para garantir que os padrões de sustentabilidade sejam aplicados em toda a cadeia produtiva.
Entre as recomendações do relatório estão:
- Recuperação do rio Cateté: Implementar medidas efetivas para remover os metais pesados e restaurar o ecossistema local.
- Consultas Transparentes: Garantir que as comunidades indígenas tenham voz ativa nos processos de licenciamento ambiental.
- Monitoramento Independente: Contratar auditorias externas para avaliar o impacto ambiental e propor soluções baseadas em dados imparciais.
Lições e Caminhos Adiante
A decisão da Outokumpu demonstra que pressões internacionais e movimentos de consumidores têm o poder de influenciar práticas empresariais, mesmo em indústrias tradicionalmente associadas a impactos ambientais severos. O rompimento com a Vale envia um recado claro: o respeito aos direitos humanos e à sustentabilidade não são mais opcionais no mercado global.
Para a Vale, o caso representa uma oportunidade de reconquistar a confiança de clientes e comunidades por meio de ações concretas que demonstrem compromisso com a responsabilidade ambiental e social. Além disso, destaca a necessidade urgente de adotar modelos de desenvolvimento que priorizem a preservação ambiental e a inclusão das populações afetadas.
O futuro da mina Onça Puma e sua relação com os Xikrin permanece incerto, mas o caso já serve como um alerta para o setor de mineração sobre os riscos de negligenciar os impactos socioambientais em suas operações. Mais do que uma questão comercial, trata-se de um teste para os limites da sustentabilidade em um mundo que busca equilibrar progresso econômico e preservação ambiental.