Resgate histórico devolve onça-pintada ao coração da Amazônia

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A operação que devolveu à natureza a onça-pintada encontrada exausta no meio do Rio Negro, em outubro, entrou para a história da conservação da fauna amazônica. Mais do que um resgate bem-sucedido, o processo – que envolveu 40 dias de cuidados intensivos e uma complexa logística de transporte aéreo e fluvial – representa a primeira reintrodução completa de um indivíduo da espécie Panthera onca na Amazônia após reabilitação plena. Conduzida pelo Governo do Amazonas por meio da Secretaria de Estado de Proteção Animal (Sepet-AM), a ação mobilizou profissionais, tecnologia e cooperação institucional raramente vistas na região.

Foto: Joedi Porto e Antonio Humberto/Sepet.

O caso começou quando ribeirinhos avistaram a onça tentando cruzar o Rio Negro, entre Iranduba e Manaus, após ser atingida por disparos de chumbinho. Confusa e debilitada, a fêmea teria pouco tempo de vida caso não fosse resgatada. A intervenção contou com a ajuda da Companhia Ambiental Fluvial do Batalhão de Policiamento Ambiental (BPAmb) da Polícia Militar do Amazonas, que retirou o animal da água e garantiu seu transporte emergencial. Durante a avaliação inicial, descobriu-se que 36 estilhaços estavam alojados no rosto do felino — um quadro crítico que exigiu atendimento veterinário imediato.

Com autorização do Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (Ipaam), a onça foi encaminhada ao antigo zoológico do Tropical Hotel, em Manaus, onde ficou sob responsabilidade do biólogo Nonato Amaral. Ali começou a etapa mais sensível: a reabilitação física e comportamental, crucial para que o animal retomasse habilidades de caça, vigilância e mobilidade. Cada passo era monitorado de perto, já que qualquer sinal de dependência humana poderia inviabilizar sua devolução ao habitat natural.

Quando os especialistas confirmaram que o felino recuperara força e instintos, a Sepet-AM iniciou os preparativos para a operação de soltura. O planejamento envolveu autoridades ambientais, equipes técnicas e pesquisadores, incluindo profissionais do Laboratório de Internações de Fauna e Floresta (Laiff) da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), coordenados pelo biólogo e professor Rogério Fonseca. A logística combinou transporte aéreo e aquático: a onça viajou de helicóptero do Departamento Integrado de Operações Aéreas (DioA) da Secretaria de Segurança Pública do Amazonas (SSP) até uma comunidade de Novo Airão, e de lá seguiu em embarcação disponibilizada pela Secretaria de Estado do Meio Ambiente (Sema), rumo a uma área de floresta densa, distante de núcleos urbanos.

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Foto: Joedi Porto e Antonio Humberto/Sepet.

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A operação exigiu que veterinários, biólogos e técnicos permanecessem acampados na mata, garantindo total segurança na liberação. Antes da soltura, a onça recebeu uma coleira de radiomonitoramento com GPS, cedida pelo Instituto Onça-Pintada (IOP), organização sediada em Goiás e referência no estudo do maior felino das Américas. O equipamento permitirá acompanhar os deslocamentos da onça por até três anos. Para pesquisadores amazônicos, esses dados serão valiosos para compreender padrões de território, riscos de conflito e eventuais necessidades de intervenção.

Para Joana Darc, secretária da Sepet-AM, o retorno do animal ao ambiente natural simboliza mais do que a conclusão de um protocolo técnico. Representa um acerto de contas da sociedade com a própria floresta. Ela argumenta que a expansão humana sobre áreas naturais aumenta os conflitos com a fauna e, por isso, devolver a onça à mata é um gesto de responsabilidade institucional e ética.

O local escolhido para a soltura foi determinado por critérios estritamente científicos: abundância de presas, baixa pressão humana e conectividade com corredores ecológicos. Ao ser liberada, a onça avançou para a mata com firmeza e cautela, comportamento típico de indivíduos saudáveis e aptos.

O caso reacende debates sobre o papel das políticas públicas de fauna no Brasil. Operações como essa, que unem tecnologia, ciência e coordenação interinstitucional, demonstram que a reintrodução de grandes predadores é possível quando há investimento consistente e parcerias atuantes. Também expõe a urgência de enfrentar a violência contra a fauna, já que o ataque sofrido pela onça é um exemplo extremo, mas recorrente na Amazônia.

O resgate, a reabilitação e a soltura revelam uma Amazônia que ainda pulsa com grandes felinos, mas dependente da ação firme do Estado para que eles continuem desempenhando seu papel ecológico. A operação de 24 horas não salvou apenas uma vida individual: reforçou a ideia de que preservar a onça-pintada é preservar a própria integridade da floresta.