Novo modelo de desenvolvimento para frear a perda de biodiversidade na Amazônia


Durante anos, o Brasil acompanhou com uma espécie de anestesia estatística o avanço do desmatamento na Amazônia. Relatórios anuais do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) tornaram-se rotina nos noticiários, trazendo números que, por vezes, pareciam mais frios que a realidade que descreviam. Mas por trás de cada quilômetro quadrado de floresta suprimida, esconde-se um mundo em extinção. A floresta queimada não é apenas um dado perdido no satélite: é uma coleção de vidas, árvores, aves, primatas, insetos, micro-organismos, e saberes, modos de viver, possibilidades de futuro.

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Em 2004, foram mais de 26 mil km² desmatados. Uma área superior à de estados como Alagoas ou Sergipe, reduzida a cinzas. À primeira vista, esses dados podem parecer apenas uma confirmação do que já se suspeita, o desmatamento segue, persistente, alimentado por interesses econômicos de curto prazo. Mas um estudo conduzido pelos pesquisadores Ima Célia Guimarães Vieira, José Maria Cardoso da Silva e Peter Mann de Toledo tentou quantificar o que realmente se perde quando a floresta cai. Estimativas apontam para a destruição de algo entre 1,1 e 1,4 bilhão de árvores em apenas um ano. Ao lado disso, cerca de 50 milhões de aves e mais de dois milhões de primatas foram afetados. Uma devastação em escala que supera, em muito, o impacto do tráfico ilegal de fauna, frequentemente retratado como o maior vilão da biodiversidade brasileira.

Esses números, ainda que impressionantes, são apenas a superfície de uma questão muito mais profunda. O que se esvai com a floresta nativa não é apenas a vida biológica. Vai-se, também, o potencial medicinal de compostos ainda desconhecidos, a estabilidade dos ciclos hídricos regionais, o equilíbrio climático, os saberes tradicionais de comunidades que vivem em simbiose com o ambiente. Vai-se o futuro.

Diante desse cenário, os autores do estudo não se limitam à denúncia. Avançam uma proposta concreta: zerar o desmatamento na Amazônia. Uma ideia que, à primeira vista, pode parecer radical ou utópica. Mas, examinada com mais cuidado, revela-se estratégica, técnica e politicamente exequível, desde que haja vontade coletiva. O cerne da proposta está na construção de territórios sustentáveis, uma abordagem que integra conservação ambiental, desenvolvimento econômico, inclusão social e respeito à diversidade cultural da região.

O conceito de território sustentável rompe com a dicotomia entre preservar e produzir. Ele propõe mosaicos de uso da terra onde diferentes atividades — agroecologia, manejo florestal, turismo de base comunitária, pesquisa científica, educação ambiental — coexistem e se retroalimentam. É um modelo que reconhece as especificidades ecológicas e sociais de cada sub-região amazônica e busca soluções localizadas, mas articuladas por uma lógica comum: a manutenção dos processos ecológicos e da dignidade humana.

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Para tanto, os pesquisadores propõem seis estratégias na Amazônia:

  1. Expansão e descentralização do sistema regional de ciência, tecnologia e inovação (CT&I): O conhecimento precisa estar enraizado no território. Instituições científicas devem ser fortalecidas nas cidades do interior, com a atração de pesquisadores, infraestrutura adequada e redes colaborativas. A ciência não pode continuar concentrada em poucos polos urbanos.
  2. Gestão eficaz das áreas protegidas e Terras Indígenas (TIs): Unidades de conservação e TIs são as barreiras mais efetivas contra o avanço do desmatamento. Mas para funcionarem, precisam de orçamento, pessoal, infraestrutura e, sobretudo, segurança política. A descontinuidade dessas políticas tem sido um dos principais entraves à sua eficácia.
  3. Conversão de terras públicas não destinadas em áreas protegidas: Aproximadamente 600 mil km² de terras públicas na Amazônia permanecem sem destinação formal. Transformá-las em Unidades de Conservação ou Terras Indígenas é um passo essencial para evitar grilagem, especulação e desmatamento futuro.
  4. Aumento da proteção em áreas privadas: Cerca de 1,6 milhão de km² da floresta amazônica estão em propriedades privadas. Programas de incentivo econômico para manter as reservas legais e áreas de proteção permanente, bem como a promoção de Reservas Particulares do Patrimônio Natural (RPPNs), são fundamentais.
  5. Recuperação e uso eficiente de áreas degradadas: Áreas já alteradas devem ser reocupadas com tecnologias sustentáveis. Projetos-piloto de agroflorestas, sistemas silvipastoris e outras formas de produção regenerativa demonstram que é possível conciliar produtividade com restauração.
  6. Melhoria dos mecanismos de governança: A Amazônia exige um modelo de governança que respeite sua diversidade. Isso implica integrar políticas setoriais, garantir financiamento sustentado, fortalecer os espaços de participação local e reconhecer o protagonismo dos povos originários e comunidades tradicionais.

Essa visão integrada da gestão territorial parte do reconhecimento de que o atual modelo de desenvolvimento está falido. O discurso da Amazônia como “fronteira do progresso” serviu a interesses exógenos — grandes empreiteiras, mineradoras, latifundiários — que jamais devolveram à região o equivalente às riquezas extraídas. Os indicadores sociais dos estados amazônicos continuam entre os piores do país, enquanto a floresta segue tombando.

O desafio é enorme, mas o tempo é curto. A meta estabelecida pelo Brasil de zerar o desmatamento até 2030 não será cumprida com boas intenções e retórica ambiental. Será preciso um pacto nacional que envolva governos, setor produtivo, comunidade científica e sociedade civil. Será preciso, acima de tudo, coragem política.

Como lembram os autores do estudo, estabelecer territórios sustentáveis é uma tarefa complexa, que exige continuidade, visão de longo prazo e colaboração global. Mas é também uma oportunidade histórica de redesenhar os fundamentos da economia e da governança na região. E, quem sabe, de oferecer ao mundo uma alternativa concreta ao colapso ecológico em curso.

A Amazônia não é o último obstáculo ao progresso. Ela é a primeira condição de um futuro possível.