Créditos de carbono e territórios tradicionais entram em choque no sul do Amazonas
A promessa de que o mercado de carbono pode conciliar conservação ambiental e geração de recursos voltou a ser colocada em xeque no sul do Amazonas. Em Manicoré, município cortado por rios e marcado pela presença histórica de comunidades tradicionais, o Ministério Público Federal decidiu levar à Justiça um projeto privado de créditos de carbono acusado de avançar sobre territórios coletivos sem respeitar direitos fundamentais dessas populações.

A ação civil pública protocolada pelo MPF pede a suspensão imediata do chamado Projeto Amazon Rio, que atua na certificação e comercialização de créditos de carbono a partir da manutenção da floresta em pé. O ponto central do questionamento não é a ideia de preservação em si, mas a forma como ela foi implementada. Segundo o órgão, o projeto se sobrepõe a áreas tradicionalmente ocupadas por comunidades ribeirinhas e extrativistas, sem que tenha sido realizada a consulta livre, prévia e informada prevista em acordos internacionais dos quais o Brasil é signatário.
O caso lança luz sobre uma tensão crescente na Amazônia: a expansão acelerada de projetos climáticos privados em regiões onde a terra não é apenas um ativo ambiental, mas também base de sobrevivência, identidade cultural e organização social.
O território em disputa e a vida que nele pulsa
O inquérito conduzido pelo MPF aponta que cerca de 13% da área total do Projeto Amazon Rio incide diretamente sobre o Território de Uso Comum (TUC) de Manicoré. O restante, embora não formalmente delimitado como TUC, corresponde a áreas tradicionalmente utilizadas pelas comunidades locais para atividades essenciais como pesca, caça de subsistência e extrativismo vegetal.
No Amazonas, os TUCs são reconhecidos como espaços coletivos onde povos e comunidades tradicionais desenvolvem seus modos de vida de forma integrada à floresta e aos rios. Não se trata apenas de áreas geográficas, mas de territórios vivos, onde práticas econômicas, relações sociais e saberes tradicionais se entrelaçam ao longo de gerações. Em muitos casos, são ocupações contínuas de décadas, anteriores a qualquer projeto ambiental ou título formal de propriedade.
Para o MPF, a simples sobreposição territorial já exige um cuidado redobrado. Qualquer iniciativa que altere regras de uso, restrinja acessos ou atribua valor econômico ao território precisa, obrigatoriamente, ser discutida com quem vive ali. Sem isso, a lógica da conservação pode se transformar em mais uma forma de exclusão.

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Consulta formal não é diálogo, afirma o MPF
Um dos argumentos centrais da ação é que não houve consulta nos termos definidos pela Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho, que estabelece o direito de povos e comunidades tradicionais de serem consultados de forma livre, prévia e informada sobre projetos que afetem seus territórios.
Embora a Empresa Brasileira de Conservação de Florestas afirme ter realizado reuniões com moradores da região, o MPF sustenta que esses encontros foram pontuais, informativos e desconectados dos modos de decisão coletiva das comunidades. Segundo o órgão, reuniões rápidas, com linguagem técnica e sem tempo para deliberação interna, não configuram consulta válida.
Na avaliação do MPF, houve uma inversão do processo: decisões já estavam tomadas quando as comunidades foram chamadas a ouvir apresentações. Em contextos onde grande parte da população não tem acesso à informação técnica ou jurídica formal, esse tipo de abordagem tende a produzir consentimentos frágeis ou meramente aparentes.
Essa crítica se estende a toda a cadeia do projeto, envolvendo não apenas a EBCF, mas também a certificadora internacional Verra e as empresas Co2x Conservação de Florestas, Renascer Desenvolvimento Humano e HDOM Consultoria Ambient, todas citadas como participantes do arranjo institucional do Projeto Amazon Rio.
O que a Justiça pode decidir e o precedente em jogo
Na ação, o MPF pede a paralisação total e imediata do projeto, incluindo novas auditorias, validações, emissões, transferências ou vendas de créditos de carbono. Solicita ainda que todos os créditos já emitidos sejam declarados nulos e que a Verra seja obrigada a cancelar as certificações concedidas.
Além das medidas estruturais, o órgão requer a condenação solidária das empresas ao pagamento de indenização por danos morais coletivos, estimada em R$ 10 mil para cada comunidade afetada, e por danos materiais correspondentes ao valor total dos créditos comercializados, estimado em cerca de US$ 430 mil.
Mais do que um conflito localizado, o caso pode criar um precedente relevante para o futuro do mercado de carbono no Brasil. Ele sinaliza que projetos climáticos, mesmo quando alinhados ao discurso da preservação, não estão acima das garantias constitucionais e dos direitos territoriais de povos tradicionais.
O debate que se desenha vai além da legalidade de um projeto específico. Ele questiona qual modelo de transição ecológica o país pretende adotar: um em que a floresta é protegida com seus habitantes, ou outro em que soluções climáticas globais se impõem sobre realidades locais complexas.
Na Amazônia, onde a floresta é casa antes de ser ativo ambiental, a resposta a essa pergunta pode definir não apenas o futuro dos créditos de carbono, mas também o significado da própria conservação.
















































