O futuro da segurança hídrica da Amazônia está sendo desenhado por meio de cooperação, ciência aplicada e compromissos multilaterais. Nos últimos meses, dois movimentos complementares mostraram como os países que compartilham a Bacia Amazônica estão fortalecendo sua capacidade de gerir as águas transfronteiriças. De um lado, a Rede Amazônica de Autoridades de Água (RADA) deu início à implementação dos Protocolos Regionais de Monitoramento, que estabelecem bases comuns para medir quantidade e qualidade da água. De outro, o Projeto Bacia Amazônica levou para a Semana Mundial da Água, em Estocolmo, a mensagem de que a governança hídrica regional precisa integrar ciência, comunidades locais e setores estratégicos como agricultura, energia e florestas.

Protocolos regionais: monitorar para gerir em conjunto
Entre 29 de julho e 1º de agosto, especialistas em hidrologia e meteorologia de oito países amazônicos reuniram-se em Brasília para o Curso Regional de Implementação de Redes de Monitoramento Hidrológico, Meteorológico e da Qualidade da Água. Organizado pela Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA), com apoio do Projeto Bacia Amazônica e em parceria com a Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA), o encontro marcou o início da aplicação prática dos protocolos regionais aprovados pela RADA.
O objetivo foi mais do que técnico: construir uma visão comum sobre a importância de compartilhar dados confiáveis e comparáveis, capazes de embasar diagnósticos conjuntos e orientar políticas públicas para toda a região.
Naziano Filizola, consultor do projeto e coordenador do curso, destacou que a capacitação buscou mostrar aos participantes a relevância da Gestão Integrada dos Recursos Hídricos (GIRH) no contexto amazônico. Ao trabalhar cenários de vazões, secas e inundações, a troca de experiências permitiu refletir sobre como integrar dados dispersos em sistemas compatíveis e úteis para a tomada de decisão.
O curso combinou exposições técnicas com exercícios práticos, como a simulação em zonas transfronteiriças fictícias. Essa experiência destacou um princípio central: rios não reconhecem fronteiras políticas. Como afirmou Jorge Gonzalez, do Instituto de Hidrologia, Meteorologia e Estudos Ambientais (IDEAM – Colômbia), “somos parte de um mesmo território e precisamos compreender o monitoramento como esforço coletivo e multidisciplinar”.
Participantes de instituições como o INAMHI – Equador, o Serviço Nacional de Meteorologia e Hidrologia do Peru (SENAMHI) e a Autoridade Nacional de Água do Peru reforçaram a importância de multiplicar o conhecimento em suas equipes locais. A ideia é que os aprendizados não fiquem restritos ao curso, mas se transformem em capacidade institucional e colaboração contínua.
O encontro também abriu caminho para a criação do Grupo Regional de Monitoramento, que deverá integrar órgãos nacionais responsáveis por serviços hidrológicos e ambientais. Essa instância dará corpo às redes de monitoramento e garantirá que os protocolos não sejam apenas diretrizes no papel, mas práticas consolidadas no território.

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Plataforma Regional de Informações
Outro resultado estratégico da capacitação foi a ampliação da compreensão coletiva sobre a Plataforma Regional Integrada de Informações da GIRH, iniciativa coordenada pela OTCA. Essa plataforma, em construção progressiva, reunirá dados hidrológicos fornecidos pelos países para gerar cenários regionais, balanços hídricos, tendências de vazão, alertas de secas ou cheias e apoiar comunidades, gestores e acordos internacionais.
Segundo Filizola, ter informações globais não basta: é necessário produzir conhecimento específico e de qualidade sobre os rios amazônicos, condição essencial para aumentar a resiliência diante das mudanças climáticas.
Amazônia no centro do debate internacional
Se em Brasília o foco foi capacitar técnicos e harmonizar protocolos, em Estocolmo a ênfase esteve em colocar a Amazônia no debate global sobre a água. Durante a Semana Mundial da Água, o Projeto Bacia Amazônica participou de dois painéis que discutiram a gestão de ecossistemas compartilhados e os vínculos entre florestas, água e agricultura.
Em uma sessão organizada pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), pela Agência de Cooperação Internacional do Japão (JICA), pela Organização dos Estados Americanos (OEA), pela Comissão Econômica das Nações Unidas para a Europa (CEPE), pela OTCA e pelo GEF-IW:LEARN, o especialista Fernando Cisneros destacou como a água funciona como eixo articulador da Amazônia. Instrumentos como a Análise Diagnóstica Transfronteiriça (ADT) e o Programa de Ações Estratégicas (PAE), já adotados regionalmente, orientam respostas conjuntas para desafios que vão da conservação de ecossistemas à saúde pública.
Outro destaque foi a criação da própria RADA em 2024, que hoje já avança na elaboração de um Livro Branco para consolidar princípios de monitoramento e estratégias institucionais com participação de povos indígenas e comunidades locais.
Cisneros também apresentou o Observatório Regional Amazônico (ORA), que busca democratizar o acesso a dados socioambientais e climáticos em tempo real.
Integração entre setores
No painel dedicado a florestas e agricultura, organizado pela FAO, pela Universidade Sueca de Ciências Agrárias (SLU), pelo Instituto Ambiental de Estocolmo (SEI) e pela SIANI, Cisneros destacou que o desafio não é apenas científico. A resiliência amazônica depende da integração entre setores estratégicos: proteger florestas, melhorar a produtividade agrícola e diversificar a matriz energética de forma coordenada.
Segundo ele, isso exige dados de qualidade, ferramentas analíticas e capacitação técnica. Mais do que um esforço isolado, trata-se de construir uma governança hídrica que dialogue com economia, clima e biodiversidade.
Um mesmo território, um mesmo futuro
Seja no trabalho prático de harmonizar protocolos em Brasília, seja na diplomacia científica em Estocolmo, a mensagem é a mesma: a Amazônia precisa de uma gestão da água que reconheça sua natureza transfronteiriça e estratégica. Os avanços recentes mostram que os países da região estão dispostos a cooperar, fortalecer suas instituições e apostar na ciência como alicerce da governança hídrica.
Mais do que um desafio técnico, trata-se de um projeto político e civilizatório: cuidar das águas amazônicas é cuidar do futuro de toda a região.











































