No território quilombola Nossa Senhora de Fátima do Crauateua, em São Miguel do Guamá, no nordeste do Pará, a merenda escolar deixou de ser apenas uma política pública distante para se tornar extensão direta da vida comunitária. O que chega ao prato das crianças da Escola Municipal de Ensino Infantil e Fundamental Afonso Félix Damasceno nasce da terra cultivada por seus próprios pais, parentes e vizinhos. É alimento, mas também identidade, economia local e permanência no território.

O pequeno Ruan Gabriel, de quatro anos, consome na escola frutas, grãos e hortaliças plantadas pela própria família. Mamão, milho, quiabo e outros alimentos percorrem um caminho curto entre a roça e a sala de aula. Nesse percurso, não há atravessadores, grandes distâncias ou rupturas culturais. O que existe é uma engrenagem coletiva sustentada pelo trabalho das famílias quilombolas e pelo apoio técnico da Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural do Estado do Pará, a Emater Pará.
Essa relação entre produção agrícola e alimentação escolar transforma a merenda em algo que vai além da nutrição. Ela se torna um elo entre políticas públicas, segurança alimentar e valorização de saberes tradicionais, mostrando que o desenvolvimento rural pode ser inclusivo quando respeita os modos de vida locais.
Agricultura familiar, identidade e permanência no campo
Para as famílias quilombolas da comunidade, produzir alimentos que abastecem a escola onde estudam seus próprios filhos tem um significado profundo. Não se trata apenas de gerar renda, mas de afirmar pertencimento. O alimento carrega histórias, práticas agrícolas herdadas e a memória coletiva de um povo que construiu sua relação com a terra ao longo de gerações.
Esse sentimento aparece com força no relato dos agricultores, que veem na produção local uma garantia de qualidade, mas também de autonomia. Saber que o alimento servido às crianças foi cultivado sem romper com tradições, respeitando o tempo da natureza e os conhecimentos transmitidos entre gerações, reforça a autoestima comunitária e fortalece o vínculo das famílias com o território.
Ao mesmo tempo, a experiência ajuda a enfrentar um dos grandes desafios das populações tradicionais: permanecer no campo com dignidade. A possibilidade de comercializar a produção local para o poder público cria uma fonte de renda estável e previsível, reduzindo a pressão por migração e estimulando os jovens a enxergarem futuro na agricultura familiar.

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Documentação, políticas públicas e o papel da Emater
Esse arranjo produtivo só se sustenta porque existe uma base institucional que permite às famílias acessar políticas públicas. Neste mês de dezembro, dez famílias quilombolas da comunidade tiveram seus Cadastros da Agricultura Familiar atualizados com apoio do Governo do Pará, por meio da Emater Pará. O documento é indispensável para participar de programas como o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae) e o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA).
Mais do que um cadastro, esse processo representa a inclusão formal de agricultores tradicionais em políticas estruturantes. Sem ele, a produção existe, mas não alcança os mercados institucionais. Com ele, a agricultura familiar passa a dialogar diretamente com o Estado, garantindo escoamento da produção e reconhecimento oficial.
Segundo a Associação dos Quilombolas da Comunidade Nossa Senhora de Fátima do Crauateua, a parceria com a Emater vai além da burocracia. A entidade, que reúne cerca de 60 associados, recebe acompanhamento técnico, apoio na organização coletiva e orientação para lidar com exigências legais que muitas vezes afastam pequenos produtores das políticas públicas.
Fortalecer organizações sociais para sustentar o futuro
Na avaliação dos técnicos da Emater em São Miguel do Guamá, o fortalecimento das organizações sociais de populações tradicionais é parte central da estratégia de atuação no território. O trabalho envolve desde o Cadastro Ambiental Rural coletivo até a regularização jurídica da associação comunitária e os cadastros individuais das famílias.
Esse conjunto de ações produz efeitos que vão muito além do campo administrativo. Ele impacta diretamente a eficiência dos sistemas produtivos, movimenta a economia local e reforça o valor cultural da existência quilombola. Ao reconhecer essas comunidades como agentes econômicos e sociais, o Estado contribui para romper ciclos históricos de invisibilidade.
A experiência da Comunidade Nossa Senhora de Fátima do Crauateua mostra que políticas públicas bem articuladas podem transformar realidades sem impor modelos externos. Ao conectar assistência técnica, agricultura familiar e alimentação escolar, o território constrói uma solução que respeita sua identidade e fortalece sua autonomia.
Quando a merenda escolar nasce dentro do próprio território, ela alimenta corpos, sustenta economias locais e reafirma histórias. Mais do que um programa governamental, trata-se de um exemplo concreto de como desenvolvimento, cultura e justiça social podem caminhar juntos.











































