Quilombo de Cabo Frio denuncia esgoto e expõe racismo ambiental


Brejo que sustenta a vida, brejo que adoece

No coração do Quilombo Maria Joaquina, em Cabo Frio, na Região dos Lagos do Rio de Janeiro, o Brejo da Flexeira sempre foi mais do que um espaço natural. Ele é memória, alimento, território simbólico e fonte de sobrevivência para cerca de 120 famílias quilombolas. Durante gerações, o brejo garantiu peixe, água, lazer, cultivo e equilíbrio ambiental. Nos últimos quatro anos, porém, esse mesmo espaço passou a carregar o peso do abandono institucional e da poluição sistemática.

Quilombo Maria Joaquina/Divulgação

O que antes era sinônimo de abundância tornou-se foco de mau cheiro, contaminação e risco à saúde. Esgoto cru, lançado de forma contínua, comprometeu a qualidade da água, matou o pescado e alterou profundamente a dinâmica ecológica do local. Para os moradores, a transformação não foi gradual, mas abrupta e violenta: um ataque direto ao modo de vida quilombola.

Segundo denúncias da comunidade e do Ministério Público Federal (MPF), a principal origem do problema está em uma obra realizada pela Prefeitura de Cabo Frio em 2022. Uma rede de drenagem pluvial foi instalada com manilhas que desembocam diretamente no brejo. A partir delas, ligações clandestinas conectadas por moradores e comerciantes de áreas vizinhas passaram a despejar esgoto doméstico e resíduos químicos no território quilombola.

Um conflito que expõe omissões do poder público

O caso ganhou contornos jurídicos mais severos em dezembro de 2025, quando o MPF ajuizou uma ação civil pública com pedido de tutela de urgência contra o município. A iniciativa é resultado de mais de dois anos de investigações, vistorias técnicas, reuniões e tentativas frustradas de solução administrativa.

De acordo com o procurador da República Leandro Mitidieri, mesmo após notificações e compromissos assumidos, as ações adotadas pela prefeitura foram pontuais e insuficientes para cessar a poluição. Entre elas, notificações isoladas, instalação de alguns sistemas individuais de tratamento e aquisição de equipamentos que não resolveram o problema estrutural.

Vistorias realizadas em conjunto com a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro (DPRJ) confirmaram a persistência do despejo irregular. Um laudo técnico de novembro de 2024 identificou ligações clandestinas ativas e a presença de produtos químicos na tubulação que desemboca no brejo.

Enquanto isso, os impactos se acumulam. Além do colapso ambiental, há prejuízos econômicos severos para famílias que dependiam da pesca e da agricultura de subsistência. Há também relatos de problemas de saúde, como lesões e manchas na pele, associadas ao contato com a água contaminada.

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Quilombo Maria Joaquina/Divulgação

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Racismo ambiental e violação de direitos históricos

Para lideranças quilombolas, o que acontece no Brejo da Flexeira não é apenas um crime ambiental: é um caso emblemático de racismo ambiental. A educadora socioambiental Rejane Maria de Oliveira, coordenadora executiva da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), afirma que a escolha do território quilombola como destino do esgoto revela uma lógica histórica de marginalização.

Segundo ela, o quilombo nunca despejou esgoto no brejo. As casas utilizam sistemas adequados de fossa e sumidouro, justamente por reconhecerem o valor ecológico do local. Ainda assim, o território foi tratado como zona de sacrifício, recebendo resíduos que não seriam tolerados em áreas centrais da cidade.

O Quilombo Maria Joaquina abriga cerca de 420 pessoas, descendentes de ex-escravizados da antiga Fazenda Campos Novos. Em dezembro de 2024, a comunidade obteve a portaria de reconhecimento de seu território, com 165 hectares, emitida pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). A titulação definitiva, no entanto, ainda não foi concluída — fator que agrava a vulnerabilidade do território.

Para as lideranças, a demora na titulação e a falta de políticas públicas consistentes ampliam os riscos ambientais e sociais. A defesa do território tradicional é vista como uma das mais eficazes estratégias de proteção ambiental.

Reparação, justiça e futuro possível

Na ação judicial, o MPF solicita medidas imediatas: remoção de todas as ligações clandestinas, despoluição integral do brejo, desmontagem das estruturas de manilhamento irregulares e construção de uma nova rede que impeça futuros despejos no território quilombola. O prazo para comprovação das medidas é de até 90 dias após decisão judicial.

Além disso, o órgão pede indenização por danos morais coletivos no valor mínimo de R$ 1,2 milhão, com recursos destinados ao Fundo de Direitos Difusos e à associação representativa da comunidade. Como alternativa, a própria comunidade propôs projetos estruturantes de igual valor, como tanques de piscicultura, restaurante comunitário, forno cerâmico e programas de educação ambiental.

Para Rejane, nenhuma reparação apaga o que foi perdido, mas pode abrir caminhos para a reconstrução. O brejo, segundo ela, levará tempo para se recuperar. Até lá, o quilombo precisa de meios para garantir sua soberania alimentar e sua dignidade.

Procurada, a Prefeitura de Cabo Frio informou que encaminhou o caso às áreas técnicas e jurídicas para análise e que adotará providências com base nos estudos realizados, reiterando compromisso com a proteção ambiental e o diálogo institucional.

Enquanto isso, o Brejo da Flexeira permanece como símbolo de resistência e denúncia. Um território que revela como a degradação ambiental, quando direcionada a povos tradicionais, deixa de ser apenas um problema ecológico e se transforma em violação de direitos humanos.