Sambaquis amazônicos revelam a memória ecológica e alimentar dos povos da floresta


Entre as várzeas e igarapés do Baixo Amazonas, no encontro das águas do Tapajós e do Xingu, repousam montes de conchas e sedimentos que guardam a história silenciosa de antigas populações indígenas. Esses monumentos, conhecidos como sambaquis, vêm sendo redescobertos por uma missão arqueológica franco-brasileira que busca compreender como a biodiversidade e as práticas alimentares se transformaram ao longo de milênios na Amazônia.

Peneirando o passado: ao se degradar com a ação do tempo, as conchas que constituem os sambaquis liberam carbonato de cálcio (calcita), que permite a conservação de restos orgânicos de animais e plantas presentes no sítio arqueológico (foto: Bárbara Valle)

A pesquisa, liderada por cientistas do Museu Nacional de História Natural da França (MNHN), é realizada em parceria com a Universidade de São Paulo (USP) e com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). Os resultados iniciais foram apresentados no Fórum Brasil-França “Florestas, Biodiversidade e Sociedades Humanas”, ocorrido em São Paulo no início de outubro de 2025. O evento, organizado pelo MNHN e pela FAPESP, teve como foco as interações entre ecossistemas florestais e sociedades humanas, tanto no passado quanto no presente.

A arqueóloga Gabriela Prestes Carneiro, pesquisadora do MNHN e coordenadora da missão, descreve os sambaquis como “locais de memória”, revisitados e reconstruídos ao longo de mais de três mil anos. Essas estruturas, formadas por conchas, ossos e sedimentos, servem como testemunhos das relações entre os povos originários e o ambiente amazônico. Segundo ela, compreender esses espaços é também entender a forma como os humanos moldaram a floresta — e como, em contrapartida, a floresta moldou suas formas de vida.

forumbrasilfrancadia02-cred-danielantonio-gabrielab-400x265 Sambaquis amazônicos revelam a memória ecológica e alimentar dos povos da floresta
Gabriela Prestes Carneiro, pesquisadora do Museu Nacional de História Natural da França, durante o Fórum Brasil-França, na FAPESP: sambaquis são locais de memória que foram visitados, reconstruídos e reocupados desde cerca de 3 mil anos atrás (foto: Daniel Antônio/Agência FAPESP)

VEJA TAMBÉM: Pesquisa arqueológica de práticas indígenas na fertilização da Amazônia é premiada nos EUA

Embora os sambaquis sejam mais conhecidos nas regiões costeiras do Sul e Sudeste do Brasil, evidências recentes mostram que monumentos semelhantes se espalham também pela Amazônia. No litoral do Salgado, na foz do rio Amazonas, e no Baixo Amazonas, arqueólogos começaram a identificar estruturas com características comparáveis às dos sítios litorâneos. No sítio arqueológico de Munguba, uma área de várzea entre os rios Tapajós e Xingu, o grupo liderado por Carneiro conduz escavações apoiadas inicialmente pelo Instituto Serrapilheira e atualmente financiadas pelo Ministério da Europa e dos Negócios Estrangeiros da França.

Os primeiros estudos revelam sambaquis de dimensões variadas, alguns a poucos centímetros e outros a metros acima do nível das águas. As datações indicam ocupações contínuas de até 3.500 anos. Parte dessas estruturas servia como moradia, outras como locais funerários. Mais do que abrigos ou cemitérios, eram marcos culturais, erguidos com o que a floresta e os rios ofereciam: conchas, argila e vida.

A decomposição das conchas libera carbonato de cálcio, substância que ajuda a preservar restos orgânicos de plantas e animais. Essa condição singular permite aos pesquisadores reconstituir o ambiente e a microfauna do passado. Em meio aos sedimentos, surgem sementes, escamas de peixes, ossos de mamíferos e fragmentos de anfíbios — um registro microscópico das transformações ecológicas ocorridas na região.

Entre os vestígios alimentares, destacam-se espécies de moluscos hoje ausentes da dieta amazônica, como o uruá (Sultana sultana). Segundo relatos coletados por Carneiro junto a comunidades ribeirinhas, alguns desses alimentos ainda vivem na memória das famílias mais antigas. O estudo também identificou ossos de peixe-boi (Trichechus), bacus-pedra (Oxydoras niger) e tamoatás (Hoplosternum littorale), espécies cada vez mais raras nos mercados locais, mas abundantes nos sítios arqueológicos.

Esses achados não apenas ampliam o conhecimento sobre a alimentação ancestral, como inspiram ações contemporâneas. Pesquisadores de áreas como etnobiologia e nutrição têm trabalhado, com base nesses dados, para reintroduzir plantas e alimentos tradicionais em iniciativas de alimentação escolar, como as desenvolvidas em escolas públicas de Tefé, no Amazonas.

Para Carneiro, “o estudo dos sambaquis é também um convite a repensar o presente”. A substituição de alimentos locais por produtos industrializados e carnes congeladas reflete transformações sociais e ambientais que afastam as comunidades de sua base ecológica e cultural. “Resgatar práticas alimentares do passado pode ser uma forma de recuperar equilíbrio ambiental e identidade cultural”, afirma.

Mas o tempo é um adversário constante. Os sítios arqueológicos do Baixo Amazonas sofrem pressão crescente da navegação comercial. Navios cargueiros, sobretudo os que transportam soja, passam próximos às margens, erodindo o solo e ameaçando a integridade dos sambaquis. “Cada passagem destrói não apenas camadas de sedimento, mas parte da história das populações ribeirinhas e dos povos que ali viveram há milhares de anos”, alerta a arqueóloga.

Os sambaquis amazônicos, portanto, são mais que ruínas — são arquivos vivos da interação entre natureza e humanidade. Escavá-los é escutar a floresta e compreender como, desde os tempos antigos, a Amazônia é um território de convivência e reinvenção.