Software brasileiro promete reduzir quedas de árvores nas cidades


O aumento da frequência e da intensidade de tempestades nas grandes cidades brasileiras transformou as árvores urbanas em um paradoxo contemporâneo. Ao mesmo tempo em que são essenciais para amenizar o calor, absorver carbono e melhorar a qualidade de vida, elas passaram a representar um risco crescente quando mal manejadas. Em resposta a esse desafio, pesquisadores da Universidade de São Paulo desenvolveram uma ferramenta inédita que combina escaneamento a laser, modelagem tridimensional e algoritmos matemáticos para orientar podas mais precisas e seguras, reduzindo o risco de quedas em áreas urbanas.

Foto: Flavio Ensiki

A tecnologia, já apelidada de “software da poda”, surge como uma inovação estratégica diante de um cenário em que eventos climáticos extremos deixaram de ser exceção. Apenas na capital paulista, temporais recentes provocaram centenas de quedas de árvores em poucos dias, com danos materiais e, em casos extremos, perda de vidas humanas. O novo sistema propõe substituir decisões empíricas por diagnósticos científicos detalhados, respeitando a biologia da árvore e sua arquitetura estrutural.

Quando biologia, engenharia e matemática se encontram

O desenvolvimento do software é resultado de uma colaboração interdisciplinar entre pesquisadores do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo, do Instituto de Biociências da USP e da Escola Politécnica da USP. O projeto integra as atividades do Centro de Pesquisa e Inovação em Gases de Efeito Estufa – RCGI, um Centro de Pesquisa em Engenharia apoiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo em parceria com a Shell.

A lógica por trás da ferramenta parte de um princípio simples e poderoso: árvores são estruturas naturais altamente otimizadas. Ao longo de milhões de anos, elas evoluíram para distribuir massa, peso e resistência da forma mais eficiente possível. Uma poda mal executada rompe esse equilíbrio, criando pontos de fragilidade que podem se transformar em focos de ruptura durante ventos fortes.

Para evitar isso, os pesquisadores utilizam equipamentos a laser capazes de escanear a árvore em diversos ângulos. O resultado é um modelo tridimensional detalhado da copa, que permite simular forças como peso próprio, deformações e deflexões causadas pelo vento. A partir dessas informações, o algoritmo indica onde e quanto cortar, buscando preservar o equilíbrio estrutural e a saúde da planta.

Testes práticos e ganhos concretos na segurança urbana

Os primeiros testes foram realizados no campus da USP, em São Paulo, onde diferentes cenários de poda foram comparados. Em um deles, uma redução de até 20% da copa, orientada pelo algoritmo, manteve a estabilidade da árvore. Em outro, com cortes distintos, surgiram novos pontos de tensão, aumentando o risco de queda.

Esses resultados reforçam um problema recorrente no manejo urbano: embora a legislação permita podas de até 30% da copa, a decisão sobre como e onde cortar costuma depender da experiência individual do profissional responsável. O software propõe um salto qualitativo ao transformar essa decisão em um processo baseado em dados objetivos.

Segundo os pesquisadores, o ser humano não consegue, a olho nu, avaliar com precisão como cada galho contribui para o equilíbrio global da árvore. Já o modelo computacional consegue identificar assimetrias invisíveis e antecipar comportamentos estruturais em condições extremas, algo especialmente relevante em cidades densas, onde edifícios criam os chamados cânions urbanos e alteram o regime de ventos.

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Imagem da árvore escaneada no campus da USP (crédito: divulgação)

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Ventos, raízes e os desafios invisíveis das cidades

Além da copa, fatores urbanos como calçadas estreitas, raízes comprimidas, idade da arborização e verticalização do entorno influenciam diretamente a estabilidade das árvores. Estudos anteriores já demonstraram que podas drásticas, somadas ao estrangulamento radicular e à deterioração da madeira, são fortes indicadores de risco de queda.

O próximo passo do projeto é incorporar dados meteorológicos às simulações, incluindo velocidade e direção dos ventos durante tempestades. A ideia é identificar não apenas o lado mais frágil da copa, mas também se a árvore está posicionada em corredores de vento criados por fileiras de prédios altos. Essa integração permitirá orientar não só a poda, mas também decisões sobre onde plantar ou evitar determinadas espécies.

Outro avanço previsto é a inclusão das raízes na modelagem. Embora invisíveis, elas são fundamentais para a estabilidade da árvore. Ao mapear a arquitetura subterrânea, o software poderá oferecer diagnósticos ainda mais completos, adaptados a diferentes espécies e contextos urbanos.

Da pesquisa à gestão pública e às cidades resilientes

O potencial da tecnologia já despertou o interesse de administrações municipais. A Secretaria do Verde e do Meio Ambiente da Prefeitura de São Paulo informou estar em tratativas para avaliar a aplicabilidade do software nos serviços de manejo arbóreo da cidade, especialmente em ações de poda preventiva.

Os pesquisadores também vislumbram a criação de startups e soluções comerciais baseadas na ferramenta, com o objetivo de reduzir custos e ampliar a escala de aplicação. O método é considerado escalável e pode ser utilizado para mapear toda a arborização de uma cidade, oferecendo uma base científica sólida para políticas públicas de adaptação às mudanças climáticas.

O projeto dialoga ainda com outras iniciativas estratégicas, como o Centro de Inteligência de Dados em Saúde Pública – CID-SP EMERGÊNCIAS, apoiado pela FAPESP no âmbito do programa Centros de Ciência para o Desenvolvimento, e com o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia do Bioetanol, financiado pela FAPESP e pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico.

Ao transformar árvores em estruturas legíveis para algoritmos, a pesquisa inaugura uma nova fase do manejo urbano, em que tecnologia, natureza e planejamento caminham juntos. Em um mundo cada vez mais afetado pelas mudanças climáticas, proteger as árvores também significa proteger as cidades