Labby, a agtech que detecta mastite com IA em tempo real e pode mudar o futuro da pecuária de leite


Antes do amanhecer, vacas se alinham calmamente em frente a ordenhadeiras robóticas, balançando o rabo para afastar moscas. A cena, comum em fazendas leiteiras de alta tecnologia, esconde um dos problemas mais antigos e persistentes do setor: a mastite, infecção bacteriana que atinge o úbere, reduz a produção e obriga ao descarte de litros de leite contaminado. A doença, que gera dor aos animais e prejuízo aos produtores, custa à indústria global cerca de 32 bilhões de dólares por ano.

Julia Somerdin - Fundadora da agtech Labby

Foi nesse ponto vulnerável da cadeia que Julia Somerdin decidiu intervir. Fundadora da Agtech Labby, a engenheira criou um sistema capaz de detectar em tempo real sinais precoces de mastite, muitas vezes antes que os primeiros sintomas apareçam. O dispositivo portátil, batizado de MilKey — um trocadilho apreciado no setor — funciona como um “Game Boy do leite”, coletando amostras e analisando sua composição em segundos. Um algoritmo de inteligência artificial mede gordura, proteína e células somáticas, entregando ao produtor, via aplicativo, um alerta imediato sobre o risco de infecção.

Detecção precoce, impacto direto

Em rebanhos de centenas ou milhares de vacas, é impossível que produtores observem cada animal diariamente. A ferramenta de Julia cumpre esse papel, permitindo que a atenção seja voltada para os casos críticos. Cada episódio de mastite pode custar até 500 dólares em perda de produção, sem contar medicamentos e riscos de contaminação do rebanho. A prevenção é, portanto, não apenas uma questão de bem-estar animal, mas de sobrevivência econômica.

“É como numa sala de aula: o professor precisa focar nos alunos que mais precisam. O mesmo vale para as vacas. O produtor deve dedicar tempo àquelas que estão em risco”, explica Julia.

Da telecomunicação ao campo

O caminho até chegar a esse ponto não foi linear. Nascida na China, formada em engenharia elétrica e com carreira consolidada em telecomunicações e defesa, Julia decidiu migrar para a área da saúde animal ao ingressar no MIT, onde conheceu os cofundadores de sua startup. Em 2017, fundou a Labby, determinada a criar uma tecnologia acessível, flexível e capaz de ser aplicada em qualquer sistema de ordenha.

Digulgacao-400x267 Labby, a agtech que detecta mastite com IA em tempo real e pode mudar o futuro da pecuária de leite
Nova tecnologia Agtech Labby – Divulgação

Nos primeiros anos, o projeto sobreviveu de prêmios de inovação e investimentos modestos. Em 2022, Julia chegou a manter a empresa sozinha, depois que os recursos se esgotaram. “A maioria das startups fecha nessas condições. Mas eu não fechei”, conta. A virada veio com o prêmio Grow-NY, que injetou 250 mil dólares e abriu portas para novas rodadas de financiamento. Hoje, a Labby tem oito funcionários e já instalou seu primeiro sistema comercial em Kentucky, nos Estados Unidos.

Saúde animal como elo da saúde global

Julia insiste em ver o problema em escala mais ampla: a saúde animal está diretamente ligada à saúde humana e ao planeta. Quanto mais eficiente for o cuidado com os rebanhos, menor será o desperdício de leite, menores os custos da cadeia e maior a segurança alimentar. Além disso, os dados coletados pela Labby, quando integrados, podem se transformar em uma base poderosa para pesquisas sobre produção, nutrição e sustentabilidade.

“Nos últimos vinte anos, o big data revolucionou a saúde humana. Agora é hora de a pecuária viver essa transformação”, afirma.

Integração como desafio

Para pesquisadores como Julio Giordano, da Cornell University, a força da Labby está justamente na flexibilidade. Outras soluções de análise existem, mas geralmente atreladas a sistemas específicos de ordenha. A tecnologia de Julia pode ser usada em qualquer estrutura, permitindo que dados ambientais e de comportamento animal sejam cruzados em uma mesma plataforma.

Essa integração é vista como o próximo grande desafio do setor: transformar múltiplas fontes de informação em inteligência prática para produtores.

Vacas com “FitBit” e futuro conectado

Na prática, vacas de fazendas piloto já usam sensores que monitoram quanto se movimentam, comem e ruminam. A Labby acrescenta a esse ecossistema uma camada essencial: o diagnóstico imediato da qualidade do leite. O sistema funciona de forma contínua, acompanhando o animal durante quase todo o dia, já que em muitas fazendas as ordenhadeiras operam até 22 horas diárias.

“Isso nos dá múltiplos olhos sobre as vacas e permite saber quando algo não está bem”, explica Jeffrey Bewley, da Holstein Association USA. Para ele, a tecnologia é mais do que inovação: é ferramenta de cuidado e bem-estar.

Uma startup com propósito

Julia não esconde o que a move. Ao lembrar de um produtor que lhe disse que não precisava de “brinquedos”, ela responde: “Não faço isso para criar gadgets. Faço porque quero ajudar a pecuária leiteira, ajudar pessoas, ajudar o planeta.”

A frase sintetiza a filosofia da empreendedora: usar a inteligência artificial não como moda passageira, mas como solução prática para um problema histórico. Se a aposta se consolidar, sua agtech pode reduzir perdas bilionárias e tornar a produção de leite mais humana, eficiente e sustentável.

veja também: Biodigestores, a tecnologia que transforma lixo em biofertilizantes e energia limpa