O julgamento sobre o chamado marco temporal voltou ao centro do debate jurídico e político brasileiro com a abertura de uma nova sessão no plenário virtual do Supremo Tribunal Federal. Em poucos dias, a Corte formou um placar inicial de três votos a zero pela inconstitucionalidade da tese, que restringe o direito dos povos indígenas à posse apenas das terras ocupadas em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal.

O voto mais recente foi registrado pelo ministro Cristiano Zanin, somando-se às manifestações anteriores de Gilmar Mendes, relator do caso, e de Flávio Dino. A votação permanece aberta até quinta-feira, quando os demais ministros deverão se manifestar. O resultado final tem potencial para redefinir, mais uma vez, os limites entre os direitos originários dos povos indígenas e as tentativas legislativas de restringi-los.
O que está em julgamento no Supremo
O marco temporal é uma tese jurídica segundo a qual os povos indígenas só teriam direito às terras que estivessem sob sua posse na data da promulgação da Constituição de 1988 ou que estivessem em disputa judicial naquele momento. Para os defensores da tese, essa interpretação traria segurança jurídica ao processo de demarcação. Para os povos indígenas e seus apoiadores, no entanto, ela ignora um histórico de expulsões, violência e deslocamentos forçados ocorridos antes e depois da Constituição.
Em 2023, o próprio Supremo Tribunal Federal já havia declarado o marco temporal inconstitucional, ao reconhecer que os direitos indígenas são originários, anteriores à formação do Estado brasileiro. Ainda assim, o tema retornou à Corte após o Congresso Nacional aprovar a Lei 14.701/2023, que incorporou a tese do marco temporal à legislação infraconstitucional.
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva vetou trechos centrais da lei, por considerá-los incompatíveis com a Constituição. O veto, porém, foi derrubado pelo Congresso, fazendo com que a regra voltasse a produzir efeitos. Esse embate institucional levou novamente o tema ao STF, agora em um cenário de maior tensão política e mobilização social.

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Direitos indígenas e a memória do território
Para as organizações indígenas, a retomada do julgamento é vista como um momento decisivo. A tese do marco temporal, segundo essas entidades, desconsidera que muitos povos foram removidos à força de seus territórios ao longo do século XX, seja por obras de infraestrutura, expansão agropecuária ou violência direta. Fixar 1988 como referência, afirmam, equivale a legitimar injustiças históricas.
Foi nesse contexto que a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil acionou o Supremo, ao lado de partidos políticos alinhados ao governo, para questionar novamente a constitucionalidade da tese. Para essas organizações, a Constituição reconhece que o vínculo dos povos indígenas com a terra não se limita à ocupação física contínua, mas envolve dimensões culturais, espirituais e históricas.
As manifestações indígenas contra o marco temporal, como as realizadas na Esplanada dos Ministérios, em Brasília, refletem esse entendimento. Lideranças de diferentes regiões do país têm defendido que a demarcação de terras é condição essencial para a preservação dos modos de vida tradicionais e para a proteção dos biomas brasileiros.
A reação política e o papel do Congresso
Enquanto o Supremo analisa o tema, o Congresso Nacional segue em movimento paralelo. No Senado Federal, foi aprovada recentemente a Proposta de Emenda à Constituição 48/2023, que busca inserir explicitamente o marco temporal no texto constitucional. A iniciativa representa uma tentativa de sobrepor a interpretação legislativa ao entendimento do Judiciário.
Caso avance na Câmara dos Deputados e seja promulgada, a PEC poderá abrir um novo capítulo de disputas jurídicas, colocando em confronto direto o poder constituinte derivado e a interpretação consolidada do STF sobre os direitos indígenas. Especialistas avaliam que a medida tende a prolongar a insegurança jurídica, em vez de resolvê-la.
Além disso, partidos como PL, PP e Republicanos protocolaram ações no Supremo para manter a validade da lei que incorporou o marco temporal. Do outro lado, entidades indígenas e partidos governistas reforçam que a tese viola cláusulas pétreas da Constituição, como o reconhecimento dos direitos originários.
Um julgamento que vai além da lei
Mais do que uma controvérsia técnica, o julgamento do marco temporal carrega um peso simbólico e histórico. Ele coloca em discussão qual leitura da Constituição deve prevalecer: aquela que reconhece a diversidade étnica e cultural do país ou aquela que subordina esses direitos a marcos temporais rígidos.
O placar inicial de três votos contra o marco temporal sinaliza que parte significativa do Supremo mantém o entendimento firmado em 2023. No entanto, até a conclusão do julgamento, o cenário permanece aberto. Os próximos votos indicarão se a Corte seguirá reafirmando os direitos indígenas ou se haverá espaço para divergências internas.
Para os povos indígenas, o resultado do julgamento terá impactos diretos sobre a segurança de seus territórios e sobre a continuidade de processos de demarcação em curso. Para o país, a decisão ajudará a definir como o Estado brasileiro lida com sua própria história e com os direitos daqueles que habitavam este território muito antes da formação da República.
Independentemente do desfecho, o julgamento reforça que a questão indígena permanece no centro das disputas institucionais do Brasil, exigindo não apenas decisões judiciais, mas um compromisso político duradouro com a Constituição e com a diversidade que ela busca proteger.














































