Se há algo que atravessa o imaginário brasileiro sobre a Amazônia é a ideia de isolamento devido o lugar ser longe demais, caro demais, difícil demais.

Quando a distância é um mito
Há décadas, essa narrativa alimenta tanto a inércia do poder público quanto a resignação institucional. E talvez por isso tenha sido tão contundente o gesto do professor Augusto Barreto Rocha, da Universidade Federal do Amazonas, ao abrir sua palestra na sede da Suframa com um corte cirúrgico: “O problema não é a distância. É a falta de infraestrutura.”

A afirmação ressoa como um ajuste de foco. Ao substituir o argumento da geografia pelo da negligência, Rocha devolve à política sua responsabilidade, e à logística, sua dimensão estratégica. A fala integrou o segundo encontro de uma série de capacitações técnicas promovidas pela Suframa, voltadas a temas estruturantes para a região. Desta vez o tema em pauta foi “Infraestrutura e Logística na Amazônia”, mas o que se discutiu na essência foi muito mais do que estradas, portos e planilhas.
A tecnocracia da desigualdade
Durante a exposição, o professor não poupou críticas ao que chamou de “tecnocracia da desigualdade” uma maneira sofisticada de nomear o modelo vigente de planejamento logístico no país, que, ao se pretender neutro e técnico, muitas vezes só reafirma os desequilíbrios históricos entre regiões. É o caso do Plano Nacional de Logística de Transportes (PLT), estruturado segundo critérios que privilegiam fluxos consolidados e densidade econômica, ignorando as necessidades específicas de territórios como a Amazônia.
O problema não é só metodológico, é epistemológico. Planejar a logística da floresta a partir da lógica de centros urbanos do Sudeste é, em si, um desvio de origem. Afinal, o que parece “irracional” do ponto de vista técnico pode, na prática, ser a única opção possível para populações inteiras que vivem à margem dos grandes eixos de transporte. Ao priorizar projetos que prometem retorno imediato, em vez de corrigir desigualdades estruturais, o país perpetua a ideia de que a Amazônia é um anexo desconfortável, um lugar sempre fora de rota. Mas como imaginar outro caminho?
Rios que ainda não viraram estradas
Rocha defende uma inversão do raciocínio convencional: em vez de esperar que a atividade econômica justifique a obra de infraestrutura, é a própria infraestrutura que deve vir primeiro como indutora do desenvolvimento. A proposta rompe com a lógica do “investimento eficiente” no curto prazo e convida à construção de uma estratégia de país que seja capaz de olhar a Amazônia como parte de seu projeto civilizatório, e não como exceção a ser compensada com renúncias fiscais.
Um dos exemplos mencionados na palestra diz muito sobre isso. Os rios, que sempre foram a espinha dorsal da mobilidade amazônica, permanecem subutilizados quando não completamente ignorados nos grandes planos logísticos nacionais. Falta hidrovias funcionais, falta segurança de navegação, falta infraestrutura portuária de fato. Em vez de promover o que já existe, o rio como estrada natural, o país investe pesadamente em modais que não dialogam com a geografia nem com a cultura da região.
Nesse sentido, as sugestões de Rocha são quase sempre pautadas por um certo pragmatismo criativo. Redução dos custos de praticagem (o serviço obrigatório de condução de embarcações por profissionais locais), estímulo à operação de portos privados, revisão das rotas atuais para reduzir o tempo e o custo de transporte como o uso do eixo Santarém-Miritituba pela BR-163, que pode ser mais eficiente que a via tradicional por Belém. São medidas que não exigem revoluções, mas vontade política. E, sobretudo, escuta.

A Suframa e o papel que pode (re)assumir
Num contexto em que a Suframa parece oscilar entre o gesto técnico e o papel político, Rocha fez uma provocação clara: a autarquia precisa recuperar seu protagonismo na formulação de propostas logísticas para a região. Não como um ator isolado, mas como articuladora de saberes institucionais, acadêmicos e populares. Isso significa, por exemplo, investir em big data, não para alimentar dashboards, mas para gerar inteligência aplicada ao território.
Uma das propostas mais interessantes veio da análise das notas fiscais de entrada na Zona Franca de Manaus (ZFM). A partir desses dados, seria possível mapear com precisão os fluxos logísticos, identificar gargalos e calibrar políticas públicas com base em evidências concretas. É o tipo de inovação que requer poucos recursos e muita articulação. Mas que pode produzir efeitos duradouros.
A fala do superintendente-adjunto de Projetos da Suframa, Leopoldo Montenegro, ao abrir o evento, indica que há disposição para esse movimento. Ao afirmar que a capacitação técnica dos servidores é peça-chave para o fortalecimento institucional, sinaliza-se que a casa quer, sim, pensar para além da gestão ordinária. Quer pensar futuro. A pergunta, como sempre, é se haverá tempo, fôlego e alinhamento político para isso.
A Amazônia que não cabe nos mapas
Falar de logística na Amazônia é também falar de imaginação. Porque a floresta impõe um desafio quase existencial ao planejamento urbano-industrial do Brasil: ela escapa. Escapa à lógica de rede, ao tempo das metrópoles, ao cálculo que transforma tudo em custo-benefício imediato. A floresta, com seus rios caudalosos e caminhos invisíveis, exige outro modo de pensar o deslocamento mais paciente, mais sistêmico, mais atento ao invisível.
Isso não significa romantizar o atraso. Ao contrário. Significa entender que o que falta à logística amazônica não é modernidade, mas coerência. Em vez de importar soluções prontas, é preciso escutar o que o território diz e o que seus habitantes vivem há séculos. A integração da Amazônia ao restante do país não pode ser pensada como uma conquista civilizatória, mas como um processo delicado, contínuo e, sobretudo, respeitoso.
Há, nesse debate, uma camada muitas vezes esquecida: a cultural. O modo como se transporta mercadoria, pessoas e saberes, tudo isso é também linguagem, é também política. E nesse sentido, construir uma infraestrutura integrada à floresta é construir também um Brasil mais integrado consigo mesmo. Um país que se leva a sério do Oiapoque ao Chuí, e que se recusa a aceitar que seu Norte continue sendo tratado como periferia.
O que a logística ensina sobre pertencimento
No fim das contas, o que está em jogo não é apenas a fluidez de cargas entre centros de produção e consumo. O que se debate, mesmo quando não se diz, é o pertencimento. Se a Amazônia segue “longe demais” dos centros decisórios, talvez seja porque o país ainda não decidiu o que quer fazer com ela e nem com quem nela vive.
Eventos como o promovido pela Suframa são, nesse cenário, pequenos rituais de reconstrução institucional. Reunir servidores para escutar especialistas, refletir criticamente sobre o próprio papel e imaginar soluções viáveis é um ato de resistência contra o automatismo da máquina pública. E também um gesto de esperança: a de que ainda é possível desenhar políticas a partir do território, e não apenas para ele.
O professor Augusto Rocha deixou essa possibilidade no ar, não como promessa, mas como provocação. Uma floresta não se movimenta sozinha, mas também não se move se continuarmos esperando que os trilhos cheguem antes da vontade.








































