A COP30 abriu espaço para um debate raro e direto sobre a geopolítica da energia. E, ao contrário do discurso que costuma colocar os países do Sul Global na posição de vulneráveis, o painel promovido pela FAPESP no Pavilhão do Brasil mostrou que a transição energética pode funcionar como motor de autonomia, inovação e protagonismo internacional. Para especialistas do Brasil, China, Índia e África do Sul, o movimento global rumo às emissões líquidas zero até 2050 representa uma oportunidade histórica: aproveitar reservas minerais estratégicas, fortalecer cadeias industriais e construir uma diplomacia científica que ultrapasse fronteiras políticas.

O ponto de partida dessa visão foi apresentado por Pu Wang, pesquisador do Instituto de Ciências e Desenvolvimento da Academia Chinesa de Ciências. Segundo ele, os países em desenvolvimento compartilham desafios, históricos e estruturais, que os tornam capazes de cooperar de forma mais assertiva na busca de soluções climáticas. Para Wang, a China fornece um exemplo emblemático. Duas décadas atrás, poucos acreditavam que mudanças climáticas poderiam gerar oportunidades econômicas de grande escala. Hoje, porém, o país é líder global em carros elétricos e exporta veículos para mercados antes inimagináveis. O avanço acelerado dessa indústria mostra que a transição energética é, acima de tudo, uma disputa industrial — e que o Sul Global pode estar no centro dela.
O especialista reforça que o potencial não se limita à manufatura. Países como Brasil, Índia e África do Sul têm vastos territórios com vantagens naturais e logísticas para energias solar e eólica, o que atrai investimentos e forma mão de obra altamente qualificada. Esse conjunto cria uma base sólida para que novas cadeias industriais surjam em torno de baterias, hidrogênio verde e eletrificação.
Mas transformar potencial em indústria real exige investimento contínuo. Por isso, Wang destacou a centralidade do financiamento público à pesquisa como motor da revolução energética chinesa. Em sua visão, países em desenvolvimento podem iniciar pelos segmentos mais acessíveis — como a produção de equipamentos solares ou a montagem de baterias — e avançar até tecnologias de alto valor agregado. A continuidade da pesquisa permitiria criar ciclos virtuosos de inovação, modernização industrial e competitividade internacional.

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Os desafios, porém, não são pequenos. Um deles foi enfatizado por Dipak Dasgupta, do Instituto de Energia e Recursos da Índia, integrante do Conselho Científico da COP30. Ele apontou que a modernização das redes elétricas de alta tensão é um gargalo que afeta todos os países do Sul Global. Quando a matriz elétrica atinge cerca de um quarto de participação das renováveis, surgem problemas de transmissão e estabilidade do sistema. Esse cenário, segundo Dasgupta, já foi enfrentado pela Índia — e a troca de conhecimento poderia acelerar soluções no Brasil, na China e em outros países emergentes. Para ele, o diálogo técnico entre operadores de redes e centros de pesquisa pode destravar avanços essenciais para que novas energias ganhem escala.
O segundo obstáculo destacado por Dasgupta é o financiamento. Sem instrumentos dedicados, a inovação no setor energético tende a avançar lentamente. Ele defende que bancos públicos e instituições financeiras organizem estratégias claras para financiar projetos de energia renovável e tecnologias associadas. Sem isso, transpor a barreira que separa a pesquisa da aplicação industrial se torna improvável.
A transição energética, contudo, não é apenas tecnológica. Também é social. Harald Winkler, da Universidade de Cape Town, alertou que descarbonizar sem incluir comunidades locais significa perder o sentido da própria transição. Para ele, justiça climática é condição de legitimidade: só haverá avanço se as populações afetadas participarem da definição de seus próprios futuros energéticos.
Essa compreensão ecoa o posicionamento de Thiago Barral, ex-secretário nacional no Ministério de Minas e Energia. Ele lembrou que países em desenvolvimento precisam construir seus próprios cenários de emissões líquidas zero. Não basta replicar modelos estrangeiros; é necessário compreender realidades específicas de território, indústria, matriz elétrica e desigualdades sociais. Só assim a cooperação Sul-Sul poderá produzir estratégias consistentes.
A mesa foi mediada por Gilberto Jannuzzi, da Universidade Estadual de Campinas, que ressaltou o propósito central do encontro: aproximar países que possuem agendas convergentes e podem evoluir juntos na criação de tecnologias e modelos para a transição energética.
Ao final, o painel deixou claro que a transição energética não é apenas uma meta ambiental. É uma janela estratégica, talvez única, para que o Sul Global ocupe um novo lugar na economia mundial. Com recursos naturais abundantes, protagonismo científico crescente e capacidade industrial em expansão, esses países têm condições de moldar o futuro energético — desde que cooperem, planejem e invistam no potencial coletivo.

















































