A Voz dos Invisíveis: Povos Indígenas, Catadores e Trabalhadores na Batalha por um Tratado Justo de Plásticos


Existe, em Genebra, um espaço de transição que desafia as noções tradicionais de política e de ativismo. Nos corredores onde se negociam os rumos da produção global, ecos de vozes marginalizadas rompem o silêncio institucional. Em vez de jargões diplomáticos, emerge um coro formado pelos que convivem dia após dia com a herança tóxica do plástico: povos indígenas, catadores de materiais recicláveis e trabalhadores sindicalizados da cadeia petroquímica.

As vozes esquecidas na luta global contra o plástico

O hábito de reduzir a crise do plástico à questão da gestão de resíduos é, em si, um sintoma de miopia política. Em primeiro lugar, porque invisibiliza quem, durante gerações, já viveu o esgoto e a contaminação. Em segundo, porque afasta do cerne da discussão o que realmente pesa: direitos territoriais, dignidade laboral e justiça ambiental.

Para os povos indígenas, essa não é uma pauta secundária. Custodiando 85% da biodiversidade em apenas 20% do território mundial, essas comunidades conhecem a face real do saque: solos contaminados, águas envenenadas e corpos marcados pela presença de microplásticos. Em territórios ancestrais, o plástico deixa de ser apenas um objeto descartável e se torna um invasor que corrói relações sociais, padrões alimentares e tradições.

“Não falamos de plásticos: falamos de nossos rios como veias que carregam nossa história e, agora, nosso veneno”, diz Viola Vi Waghiyi, matriarca Iñupiat que testemunha os impactos na saúde de crianças e anciãos. Sua fala desvenda a extensão de um problema que escapa aos mapas convencionais: os microplásticos já se acumulam em geleiras remotas e no leite materno, ameaçando não apenas a subsistência física, mas a transmissão de saberes ligados à terra e à cura.

Contra a sedução dos atalhos mercadológicos — créditos de plástico, reciclagem química e outras promessas tecnológicas —, cresce o apelo por uma transição indígena justa. Não se trata apenas de compensações financeiras, mas de empoderamento genuíno: acesso direto a fundos internacionais, consulta livre, prévia e informada, e o reconhecimento de sistemas de conhecimento que rejeitam a objetificação da natureza.

Em paralelo, nas ruas e nos lixões urbanos, surgem as vozes dos catadores. Donos de um saber prático sobre resíduos, esses milhões de trabalhadores formam uma infraestrutura invisível que sustenta as cadeias de reciclagem ao redor do planeta. Para eles, a transição não pode ser um capítulo opcional de um tratado; deve ser um pilar vinculante.

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“É diário o embate entre quem tira seu sustento do plástico e quem o produz em escala industrial”, afirma Soledad Mella, líder chilena que, com as mãos manchadas de gravetos e papelão, desenha um mapa de resistência. A proposta da IAWP (International Alliance of Waste Pickers) combina uma cláusula de Justa Transição obrigatória com mecanismos financeiros que não dependam de intermediários privados — apenas do relacionamento direto entre doadores e comunidades.

Ali, discute-se ainda a responsabilidade estendida do produtor (REP). A ideia é simples: quem produz plástico deve responder pela sua cadeia de retorno. Mas transformar teoria em prática exige mais do que leis bem escritas. Precisa de vontade política, infraestrutura especializada e, sobretudo, a legitimação daqueles que já operam o sistema de forma precária e artesanal.

No mesmo trateto, ecoa a demanda dos trabalhadores sindicalizados: segurança, condições dignas e participação efetiva. Embora a indústria petroquímica se apresente muitas vezes como vetor de progresso econômico, esconde jornadas exaustivas, exposição a substâncias perigosas e contratação precária, sobretudo em países do Sul Global.

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A Confederação Sindical Internacional (CSI) propõe normas laborais obrigatórias para toda a cadeia produtiva do plástico. Entre as prioridades, destacam-se a proteção de grupos vulneráveis — mulheres, jovens e trabalhadores informais — e a criação de redes de apoio social para quem for desligado por mudanças tecnológicas ou proibições parciais de certos polímeros.

Em uma digressão necessária, vale perguntar: que teto de ambição cabe a um tratado global? Se a referência permanecesse em acordos anteriores — raramente cumpridos —, o mundo registraria retrospectivas amargas, em que metas se diluíram em notas de rodapé. A diferença agora reside na articulação coordenada entre três frentes que, juntas, representam dezenas de milhões de pessoas.

No fundo, o que aparece em Genebra não é apenas uma pauta ambiental, mas a invenção de um novo contrato social. A inclusão simbólica, já experimentada em diversos fóruns internacionais, revela-se insuficiente quando se esmiúça quem realmente decide. Para que um tratado seja justo, é imprescindível transferir poder de barganha: orçamentos, cronogramas e escrutínios não podem mais ser dominados por conglomerados e poucos governos.

Fernando Tormos-Aponte, pesquisador de movimentos sociais, resume esse impasse: “Não há transição justa sem uma descolonização real dos processos decisórios”. Em outras palavras, o poder deve se deslocar do plenário para o chão das favelas, das aldeias e das fábricas. Sua reconstrução não cabe em cafés diplomáticos, mas em assembleias populares, audiências transparentes e comitês autogeridos.

Na ausência dessa mudança radical, corremos o risco de reproduzir o mesmo ciclo: metas ambiciosas no papel, beneficiários restritos na prática. O plástico continuará a invadir bacias hidrográficas, a intoxicar alimentos e a condensar lucros em poucas mãos. E, ao fim, quem pagará a conta serão sempre os invisíveis.

Portanto, a urgência não é retórica. É a diferença entre legitimar ou sepultar a esperança de um pacto que reflita a complexidade do planeta. Entre concordar com créditos de carbono feitos de plásticos tóxicos e apostar em reuso comunitário, há toda uma ética em jogo. Entre financiar grandes empresas de reciclagem e endossar cooperativas locais, há um retrato de futuro.

Quem ousar subestimar essa convergência histórica — povos indígenas, catadores e trabalhadores — corre o risco de produzir um tratado que, embora robusto em aparências, seja inócuo em essência. Por trás das cifras e das cláusulas, existem rostos, mãos calejadas e linguagens ancestrais pedindo passagem.

O cenário atual exige, mais do que nunca, ousadia interpretativa: reconhecer que a batalha pelo plástico é, simultaneamente, luta por direitos humanos, por soberania alimentar e por formas de produção que não deem origem a novos sacrifícios. Se essa premissa falhar, o tratado servirá apenas para registrar intenções bem-intencionadas, mas sem ossatura real.

Em última análise, a justiça em plástico — essa forma paradoxal de justiça baseada em resíduos — só se concretiza se colocado no centro quem vive a crise na própria pele. E, em Genebra, ao redor da mesa, as vozes finalmente começam a ocupar o espaço que lhes pertence.