27 Anos de Privatização da Vale, ficam os buracos

Autor: Redação Revista Amazônia

Em 1997, a Companhia Vale do Rio Doce foi privatizada em um processo que gerou controvérsias e deu início a uma longa disputa judicial. Na época, os críticos da privatização afirmavam que a venda da empresa, um dos principais ativos do governo brasileiro, representaria a entrega de riquezas naturais a investidores privados, com consequências econômicas e sociais negativas para o país. Agora, 27 anos depois, é possível avaliar os efeitos dessa transição. A Vale, que em 1997 tinha um valor de mercado de R$ 3,3 bilhões, cresceu exponencialmente, chegando a mais de R$ 260 bilhões, consolidando-se como uma das maiores mineradoras do mundo. No entanto, o crescimento econômico da Vale após a privatização veio acompanhado de graves consequências ambientais, uma cadeia produtiva ainda pouco verticalizada e uma relação controversa com o desenvolvimento econômico e social do Brasil.

A Privatização da Vale: Um Processo Marcado pela Controvérsia

A venda da Companhia Vale do Rio Doce em 1997 ocorreu em meio a um contexto de reformas neoliberais que buscavam reduzir o tamanho do Estado e promover a eficiência do setor privado. Sob o governo de Fernando Henrique Cardoso, o Brasil passou por uma onda de privatizações de empresas estatais em setores estratégicos, como telecomunicações, energia e mineração. A justificativa para a privatização da Vale era que a gestão privada seria mais eficiente e menos sujeita a influências políticas, o que aumentaria a competitividade da empresa no mercado global.

Porém, o processo de venda da Vale foi amplamente criticado, tanto pela sociedade quanto por políticos de oposição e funcionários da empresa. Um dos principais pontos de discórdia foi o valor da venda. A Vale foi vendida por cerca de R$ 3,3 bilhões, e muitos críticos alegaram que o valor estava subavaliado, uma vez que a empresa controlava vastas reservas de minério de ferro, ouro, bauxita e outros recursos naturais estratégicos. Ao longo dos anos, 69 ações populares foram ajuizadas para questionar o processo de privatização, argumentando que ele prejudicava os interesses do país e que o preço de venda não refletia o real valor dos ativos da empresa.

Em 2023, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) finalmente encerrou a maioria desses processos, aplicando a “teoria do fato consumado”, que argumenta que a reversão da privatização seria praticamente impossível, pois a empresa já havia sido profundamente transformada e seus efeitos se tornaram irreversíveis. Apesar de algumas ações ainda estarem em andamento, a decisão do STJ coloca um ponto final em um dos capítulos mais controversos da história recente do Brasil.

Crescimento Econômico da Vale: Lucros para Investidores, Desafios para o Brasil

Após a privatização, a Vale se transformou em uma das maiores empresas mineradoras do mundo, exportando principalmente minério de ferro para mercados como a China, Europa e Estados Unidos. O crescimento econômico da empresa foi impressionante: entre 1997 e 2023, o valor de mercado da Vale passou de R$ 3,3 bilhões para mais de R$ 260 bilhões. A empresa se tornou uma peça-chave no comércio global de commodities e aumentou significativamente seus lucros, beneficiando seus acionistas e investidores privados.

Por outro lado, esse crescimento econômico gerou poucas melhorias na economia real do Brasil, especialmente em termos de verticalização da produção. A Vale exporta a maior parte de seu minério de ferro em estado bruto, sem agregar valor por meio do processamento industrial. Isso significa que o Brasil, apesar de ser um dos maiores produtores de minério de ferro do mundo, não capitaliza plenamente esse recurso para impulsionar sua indústria. Países que importam o minério de ferro processam o insumo para produzir aço, gerando empregos de alta qualificação e produtos de maior valor agregado. Assim, a maior parte dos lucros resultantes do minério de ferro acaba sendo gerada fora do Brasil, enquanto o país permanece dependente da exportação de matérias-primas, uma característica típica de economias de países em desenvolvimento.

Esse modelo de exportação também gera implicações sociais e econômicas. Embora a Vale tenha se tornado altamente lucrativa, o impacto na geração de empregos de alta qualificação e no desenvolvimento industrial brasileiro foi limitado. O país perde a oportunidade de transformar suas riquezas naturais em produtos de maior valor, o que poderia diversificar sua base econômica e gerar mais benefícios para a sociedade. Além disso, essa falta de verticalização contribui para a chamada “fuga de capital”, em que a riqueza gerada pela exportação de recursos naturais acaba sendo concentrada em outros países, e não retorna ao Brasil na forma de investimentos ou desenvolvimento econômico.

Desastres Ambientais: O Legado Negativo da Privatização

Se o crescimento econômico da Vale após a privatização trouxe benefícios financeiros para seus acionistas, ele também veio acompanhado de graves consequências ambientais. Dois dos maiores desastres ambientais da história recente do Brasil ocorreram sob a gestão da Vale: o rompimento da barragem de rejeitos em Mariana em 2015, e o colapso da barragem em Brumadinho em 2019.

O rompimento da barragem de Mariana, operada pela Samarco, uma joint venture entre a Vale e a BHP Billiton, causou a morte de 19 pessoas e a destruição de comunidades inteiras, além de contaminar o Rio Doce, afetando centenas de quilômetros de cursos d’água. O impacto ambiental foi devastador, e a recuperação ainda está longe de ser concluída, mesmo anos após o desastre. Esse evento levantou sérias questões sobre a responsabilidade da Vale na supervisão de suas operações e sobre a adequação de suas práticas de segurança.

A tragédia em Brumadinho foi ainda mais grave. Em janeiro de 2019, a barragem de rejeitos da mina Córrego do Feijão, operada diretamente pela Vale, rompeu, liberando milhões de toneladas de lama tóxica que devastaram a região. O desastre resultou na morte de 270 pessoas e provocou uma das maiores catástrofes ambientais do Brasil. Investigadores descobriram que a Vale havia sido alertada sobre problemas estruturais na barragem antes do colapso, mas não tomou as medidas necessárias para prevenir o desastre. Isso gerou uma série de processos judiciais e pedidos de indenização por parte das famílias das vítimas e das comunidades afetadas.

Imagem2Esses desastres levantam questionamentos sobre a cultura corporativa da Vale após a privatização e sua relação com a responsabilidade social e ambiental. A busca por lucros e a pressão por resultados financeiros podem ter levado a uma negligência em relação à segurança e à sustentabilidade das operações. Além disso, o impacto social e ambiental desses desastres foi, em grande parte, absorvido pela sociedade brasileira, enquanto os investidores internacionais continuaram a lucrar com as operações da empresa.

Verticalização da Produção: Uma Oportunidade Perdida

Um dos principais pontos de crítica à privatização da Vale é a falta de verticalização da cadeia produtiva. Verticalização refere-se ao processo de transformar matérias-primas em produtos acabados ou semiacabados dentro do próprio país. No caso da Vale, a empresa exporta a maior parte de seu minério de ferro em estado bruto, sem agregar valor por meio do processamento industrial. Isso significa que o Brasil perde a oportunidade de gerar mais empregos e riqueza ao exportar produtos de maior valor agregado, como aço, em vez de apenas vender a matéria-prima.

A falta de verticalização é uma consequência direta da estrutura da Vale após a privatização. Como uma empresa privada focada em maximizar seus lucros, a Vale encontrou mercados internacionais dispostos a comprar minério de ferro bruto em grandes quantidades, especialmente a China, que tem uma enorme demanda por matérias-primas para sustentar seu crescimento industrial. A empresa priorizou essas exportações em detrimento do desenvolvimento de uma cadeia produtiva mais integrada no Brasil.

Essa estratégia gerou lucros para a Vale e seus investidores, mas limitou o desenvolvimento industrial do Brasil. O país, apesar de ser um dos maiores produtores de minério de ferro do mundo, não conseguiu desenvolver uma indústria siderúrgica robusta capaz de transformar o minério em produtos de maior valor agregado. Isso significa que o Brasil permanece dependente da exportação de matérias-primas, uma característica típica de economias em desenvolvimento, enquanto países industrializados colhem os benefícios do processamento e manufatura.

Benefícios Privados, Custos Públicos

Outro aspecto que merece atenção é a distribuição dos benefícios e custos da privatização da Vale. Enquanto a empresa gerou lucros recordes para seus acionistas e investidores, grande parte dos custos relacionados às suas operações, especialmente no que diz respeito aos desastres ambientais, foi socializada. Isso significa que os custos desses desastres foram, em grande parte, absorvidos pela sociedade brasileira, seja por meio da perda de vidas, da destruição de comunidades ou dos impactos ambientais de longo prazo.

A falta de uma governança mais robusta e de uma estrutura de fiscalização eficaz permitiu que a Vale priorizasse a maximização dos lucros em detrimento da segurança ambiental e da responsabilidade social. O colapso das barragens em Mariana e Brumadinho são exemplos claros de como a busca por resultados financeiros imediatos pode levar à negligência em áreas cruciais, como a segurança e a sustentabilidade. Isso gera um ciclo perverso em que os benefícios da privatização são concentrados entre investidores, enquanto os custos são distribuídos de forma desigual entre a sociedade brasileira.

Governança, Sustentabilidade e a Chegada de Gustavo Pimenta

Em 2023, a Vale passou por uma significativa mudança de liderança com a nomeação de Gustavo Pimenta como seu novo presidente. Pimenta, que havia sido CFO da companhia, assume a liderança em um momento crítico, marcado pela necessidade de reformular as estratégias de governança, sustentabilidade e reparação dos danos causados pelos desastres ambientais. Sua chegada reforça a busca por uma gestão mais ética e eficiente, com foco em reestabelecer a credibilidade da Vale e melhorar a relação da empresa com as comunidades afetadas, o meio ambiente e os investidores globais.

Sob a liderança de Pimenta, a Vale reafirma seu compromisso com a responsabilidade ambiental e social e promete adotar uma postura mais rigorosa em relação à gestão de risco, segurança e sustentabilidade. Pimenta também tem ressaltado a importância de promover uma maior transparência nas operações da empresa, especialmente após os desastres de Mariana e Brumadinho, cujas consequências ainda reverberam na sociedade brasileira e na imagem da empresa internacionalmente.

Gustavo Pimenta novo presidente da Vale
Gustavo Pimenta novo presidente da Vale

Além disso, Pimenta busca alinhar a Vale às melhores práticas globais de sustentabilidade, com ênfase em metas ambiciosas de descarbonização e na aceleração da transição para uma mineração mais verde e segura. A empresa tem trabalhado para reduzir suas emissões de carbono e melhorar a eficiência energética em suas operações, além de desenvolver tecnologias que possam diminuir o impacto ambiental da extração mineral. A transição para a disposição de rejeitos a seco e o descomissionamento de barragens de alteamento a montante são pilares dessa nova estratégia.

No entanto, um dos grandes desafios enfrentados pela gestão de Gustavo Pimenta será abordar o legado ambiental negativo deixado pelos desastres de Mariana e Brumadinho. Os desastres de Mariana (2015) e Brumadinho (2019) se destacam como os eventos mais graves envolvendo a Vale, não apenas pelo número de vidas perdidas, mas também pela extensão dos danos ambientais e sociais causados.

Impactos Ambientais Pós-Privatização

A privatização da Vale trouxe consigo uma série de desdobramentos econômicos, mas também deixou marcas profundas no meio ambiente. O rompimento da barragem de Fundão em Mariana, operada pela Samarco, e o colapso da barragem da mina Córrego do Feijão em Brumadinho, ambos resultando em perdas devastadoras, destacam a vulnerabilidade das operações da Vale a desastres ambientais catastróficos. Essas tragédias geraram críticas severas à postura da empresa em relação à segurança de suas barragens e às práticas de gestão ambiental.

O desastre de Mariana, em novembro de 2015, resultou no vazamento de 62 milhões de metros cúbicos de rejeitos de mineração, que atingiram o rio Doce, destruindo comunidades e causando um dos maiores desastres ambientais do Brasil. A recuperação do rio Doce e das áreas impactadas permanece como um desafio monumental, com diversos problemas ainda por resolver, como a contaminação da água e a reconstrução de vilarejos inteiros.

Quatro anos depois, em Brumadinho, outro colapso de barragem chocou o país. Desta vez, a tragédia causou a morte de 270 pessoas, além de destruir propriedades e devastar o meio ambiente. O impacto de Brumadinho foi particularmente severo porque a Vale havia sido alertada anteriormente sobre a fragilidade estrutural da barragem, mas, mesmo assim, não tomou as medidas preventivas necessárias para evitar o colapso. As consequências jurídicas, econômicas e ambientais desse desastre ainda estão em curso, com a empresa enfrentando processos e pedidos de indenização de milhares de famílias e comunidades impactadas.

Esses desastres, ocorridos após a privatização da empresa, levantaram sérias questões sobre a prioridade dada à segurança ambiental e à gestão de risco na Vale. Muitos críticos apontam que, após a privatização, a busca por maior rentabilidade e redução de custos operacionais resultou em falhas sistêmicas de supervisão, onde a manutenção de barragens de rejeitos perigosas foi negligenciada em prol de lucros de curto prazo. Além disso, a resposta da empresa após os desastres foi considerada insuficiente por muitos, especialmente no que diz respeito à reparação e compensação das comunidades afetadas.

Gustavo Pimenta e a Reestruturação da Cultura de Segurança

Desde sua chegada, Gustavo Pimenta tem trabalhado para redefinir a cultura de segurança dentro da Vale. Ele reconheceu que as tragédias de Mariana e Brumadinho são inadmissíveis e tem impulsionado uma série de reformas que buscam garantir que tais desastres nunca mais se repitam. Entre as principais iniciativas de sua gestão está a criação de um comitê de supervisão de riscos, que monitora continuamente as barragens e avalia as práticas de gestão de rejeitos de mineração.

A nova gestão também tem ampliado os esforços de transparência, fornecendo informações mais detalhadas e acessíveis sobre as condições das barragens e as medidas de prevenção adotadas. Além disso, a Vale intensificou a comunicação com as comunidades locais, tentando reconstruir a confiança perdida e oferecendo mais apoio a projetos de desenvolvimento sustentável nas regiões afetadas pelas operações da empresa.

Contudo, os desafios permanecem. Embora a liderança de Pimenta tenha implementado várias medidas de mitigação de riscos e acelerado a transição para práticas mais seguras e sustentáveis, críticos argumentam que os impactos dos desastres anteriores ainda são sentidos e que a reparação completa está longe de ser concluída. O processo de compensação às vítimas de Brumadinho, por exemplo, ainda está em andamento, com questões pendentes relacionadas a indenizações e recuperação ambiental.

Além disso, a empresa precisa lidar com a pressão por maior responsabilidade social. O impacto social dos desastres, incluindo a destruição de comunidades inteiras e a perda de centenas de vidas, criou um senso de desconfiança entre a população em relação à Vale, que só será resolvido com ações concretas e de longo prazo para melhorar a segurança e a sustentabilidade.

O Futuro da Vale Sob Gustavo Pimenta: Desafios e Oportunidades

O futuro da Vale, sob a liderança de Gustavo Pimenta, apresenta um equilíbrio delicado entre enfrentar as consequências do passado e se preparar para um futuro de mineração mais sustentável. As prioridades incluem o avanço de práticas ambientais rigorosas, maior comprometimento com a descarbonização e o desenvolvimento de uma cadeia produtiva mais integrada ao mercado brasileiro.

A Vale continua a ser um ator central na indústria global de mineração, com enormes oportunidades de expansão no setor de minerais críticos, como níquel e cobre, que são essenciais para a transição energética global e a economia de baixo carbono. O crescimento da demanda por esses minerais, usados em baterias para veículos elétricos e outras tecnologias verdes, posiciona a Vale de forma vantajosa para capturar uma parte significativa desse mercado.

No entanto, a empresa precisará enfrentar questões estruturais mais profundas, como a falta de verticalização da produção. Sob a liderança de Gustavo Pimenta, a Vale terá a oportunidade de revisar sua estratégia de exportação de matérias-primas em estado bruto, investindo mais em processos que possam agregar valor ao minério de ferro e outros recursos extraídos. A expansão da produção interna de aço e outros produtos industriais poderia não apenas gerar mais riqueza para o Brasil, mas também criar empregos qualificados e fortalecer a indústria nacional.

Vale apoia startup de captura de carbono para descarbonização industrial

Caminhos para a descarbonização

Além disso, a transição para uma mineração mais sustentável exigirá que a Vale invista em tecnologia e inovação. O desenvolvimento de soluções que minimizem o impacto ambiental da extração e processamento de minerais será fundamental para manter a competitividade da empresa no longo prazo. Isso inclui não apenas a substituição de barragens de rejeitos por métodos de disposição mais seguros, mas também a adoção de práticas que permitam a mineração com menores impactos ecológicos.

Por fim, o sucesso da gestão de Gustavo Pimenta dependerá de sua capacidade de equilibrar os interesses de acionistas e investidores com as demandas das comunidades locais e da sociedade brasileira como um todo. A Vale tem a oportunidade de se transformar em um modelo de mineração responsável e sustentável, mas isso exigirá um compromisso contínuo com a transparência, a reparação ambiental e o desenvolvimento econômico de longo prazo.


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