O dia 5 de agosto de 2025 entrou para o calendário econômico do Brasil como um ensaio de justiça territorial. Na sala restrita da Comissão de Assuntos Econômicos (CAE) do Senado, uma proposta de autorização para empréstimo emergiu não apenas como um número expressivo — US$ 750 milhões vindos do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) —, mas como um gesto de reparação histórica. Ao direcionar esses recursos ao BNDES, abre-se um capítulo diferente na história do financiamento às regiões menos favorecidas, sobretudo na Amazônia Legal.

O relatório do senador Eduardo Braga (MDB-AM) insistiu no contraste gritante entre os centros de poder financeiro do Sul e Sudeste e o seringal de desafios que se estende por quase 60% do território nacional. Ali, a maioria das micro, pequenas e médias empresas (MPMEs) navega sem bússola creditícia. O empréstimo, ao sustentar o programa Pro-Amazônia, não será apenas um fôlego bancário para empreendimentos locais: pretende endereçar um desequilíbrio de décadas, recriando a possibilidade de desenvolvimento sem medir custos socioambientais.
Num gesto quase poético, Omar Aziz (PSD-AM) foi o condutor da leitura do relatório. A voz dele traçou um panorama de estatísticas inquietantes: de cada dez reais do BNDES destinados ao setor produtivo, menos de um chega às margens dos rios que serpenteiam o Estado do Amazonas. Entre Brasília e a capital federal do Pará, onde o concreto convive com palafitas, existe um descompasso que o crédito de US$ 750 milhões quer, ao menos, amenizar.
Prazo de 25 anos, carência de cinco anos e meio. O ritmo dessa operação financeira imita o ciclo de crescimento de espécies arbóreas — lento no começo, acelerado quando as raízes se firmam. Não à toa, o desenho do programa leva em conta a necessidade de respiro dos negócios nas fases iniciais: é quando a maioria se perde, esmagada por juros altos e exigências burocráticas. Se a Amazônia já bastasse em sua complexidade climática e logística, o Pro-Amazônia busca desmontar barreiras como a mortalha de papel que sufoca os pequenos empreendimentos.
Seguindo agora regime de urgência para votação em Plenário, a proposta encara o teste final: o aval da União. É um rito que, para quem vive longe de Brasília, pode parecer distante. Entretanto, para cada fabricante de farinha de mandioca, cada extrativista de látex e cada inovador em bioinsumos, trata-se de uma contagem regressiva bem concreta. A despeito das promessas, a operação só se materializa se o Senado nacional permitir que a “América do Sul” empreste ao “Brasil profundo” sem que o governo central recue diante de pressões internas.
Num plano mais amplo, a iniciativa integra-se ao programa Amazônia Sempre, fruto da cooperação BID-BNDES. A proposta cruza duas vertentes: financiamento em larga escala e assistência técnica especializada. Para ilustrar com um exemplo: enquanto o Pro-Amazônia pode viabilizar a compra de equipamentos para produção de etanol de mandioca, o Amazônia Sempre oferece consultoria para aprimorar o nível de pureza do biocombustível, reduzir resíduos e abrir mercado externo. É como oferecer não só a broca, mas o mapa mineral e um engenheiro de minas.
Esse entrelaçamento de crédito e conhecimento reforça a aposta na bioeconomia. Não se trata apenas de substituir combustíveis fósseis ou de promover a agroindústria em áreas já desmatadas. Muito mais: trata-se de elevar práticas que conectem comunidades ribeirinhas aos laboratórios de biotecnologia, transformando insumos tradicionais em cosméticos, fármacos ou nutracêuticos de alto valor agregado. E, nesse movimento, dar protagonismo à cultura local, garantindo que a renda gerada reverta, sobretudo, àqueles que vivem às margens do Solimões.
Há, porém, obstáculos que vão além de diagramas de fluxo e linhas de crédito. A infraestrutura de energia renovável que se pretende impulsionar enfrenta as mazelas de uma malha elétrica fragilizada. Linhas de transmissão, muitas vezes, avançam a conta-gotas pelo interior. A energia solar, apesar do potencial — afinal, a latitude equatorial beneficia painéis fotovoltaicos — ainda esbarra na falta de técnicos especializados em montagem e manutenção. Por isso, o programa desenha módulos de capacitação profissional, ministrados em parcerias com universidades estaduais e centros de pesquisa regionais. Não basta sol; é preciso mãos treinadas para capturá-lo.
Quanto à restauração florestal, o BID e o BNDES ensaiam metas ambiciosas. Restaurar áreas degradadas é um verbo tão delicado quanto urgente. A proposta mapeia terrenos erodidos e oferece linhas de crédito específicas para reflorestamento de reserva legal, além de premiações para iniciativas que adotem espécies nativas. A ideia é recuperar não apenas a mata, mas também a fauna que, com ela, foi embora. É um sinal de que o desenvolvimento sustentável não se limita às empresas, mas se estende ao mosaico de vida que sustenta o maior bioma brasileiro.
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Em paralelo, discute-se como medir resultados. Não basta contabilizar empréstimos concedidos; é preciso acompanhar geração de empregos formais, impacto social em comunidades indígenas e quilombolas, e até emissões de carbono evitadas pela substituição de práticas predatórias. Por isso, cada projeto financiado terá indicadores de sustentabilidade amarrados a cláusulas contratuais. Caso metas ambientais não sejam atingidas, os juros podem ser recalculados para cima, gerando desincentivo a desvios de finalidade.
Essa rigidez contratual pode soar austera. Mas ali, entre Brasília e Manaus, é vista como necessária. Afinal, nada garante que o músculo financeiro internacional venha sem contrapartidas. A experiência mostra que recursos sem acompanhamento tendem a se esvair. E, na Amazônia, há casos emblemáticos de projetos que, embora bem-intencionados, falharam ao desconsiderar a dinâmica social e cultural local — empreendimentos que empobreceram ecossistemas antes de simplificá-los em plantações monofuncionais.
O cenário, no entanto, não é apenas de tensões. Existe um fio de curiosidade que percorre feiras, associações cooperativistas e startups que brotam nas margens do Tapajós. Insumos até ontem descartados passam a representar minérios modernos. Óleos essenciais do pequi ou do buriti viram matéria-prima para indústrias cosméticas europeias. Cada apresentação em evento internacional acaba se transformando numa performance de potencial econômico aliado a narrativas de preservação. E é nessa coreografia de negócios e consciência que o Pro-Amazônia pretende entrar.
Ao acionar a alavanca do crédito, o BNDES terá o desafio de equilibrar critérios de viabilidade financeira com metas socioambientais. Não basta aprovar projetos com taxa interna de retorno atraente. É preciso mapear, por exemplo, o grau de inclusão de mulheres e jovens, dimensionar impactos na segurança alimentar local e avaliar se a proposta estimula práticas agroecológicas ou pressiona novos desmatamentos. Cada nuance será rejeitada ou aprovada sob o holofote de relatórios trimestrais.
Para quem observa de fora, pode parecer um jogo de números seco e distante. Mas, nas comunidades ribeirinhas, sabe-se o valor de um emprego formal — carteira assinada, FGTS, acesso a crédito pessoal e imobiliário. E sabe-se, também, o efeito multiplicador desses benefícios. Um dinheiro extra circula no comércio local, fortalece escolas e amplia a malha de serviços de saúde. Numa província onde oftalmologistas vêm de Belém apenas uma vez por mês, qualquer sinal de dinamismo econômico soa como saída para o escuro quadro de carências.
A apropriação de recursos internacionais por aqui, assim, ganha contornos de gesto simbólico. É como se a Amazônia recebesse um convite para entrar em cena e disputar lugar de protagonismo numa economia tropical antes relegada aos papéis de coadjuvante. Um protagonismo, porém, que não se mede em PIB bruto, mas em redes de cooperação, no fortalecimento de instituições comunitárias e no respeito às identidades culturais que florescem sob a copa ancestral da floresta.
Enquanto isso, no Senado, será decisivo o desfecho da votação em Plenário. Há no ar o eco de interesses que se entrelaçam: pressão de grandes grupos que enxergam no bioma um celeiro de lucros rápidos, vozes de ambientalistas que reivindicam métodos de monitoramento remoto e o debate sobre soberania nacional. O empréstimo do BID, ao exigir aval da União, entra nesse mosaico de urgências e estratégias. Se o crédito passar, virá a fase de desembolso e implementação. Se for rejeitado, o Pro-Amazônia continuará restrito ao terreno das boas intenções.
É difícil prever os rumos, mas a disposição de mudar o eixo do financiamento interno abre uma janela de esperança. E quando se fala de esperança, não é figura de linguagem vazia. Trata-se de verificar se, após cinco anos e meio de carência, a Amazônia logrará gerar riqueza de forma mais equilibrada, oferecendo oportunidades aos locais sem estrangular o ambiente. O golpe de vista será em 2030, quando os primeiros relatórios consolidados chegarem ao Congresso. Até lá, cada micro e pequena empresa, cada cooperativa extrativista, viverá na expectativa de que esse empréstimo deixe de ser cifra contábil para se tornar instrumento palpável de transformação.


































