Os povos indígenas têm sido guardiões das florestas muito antes do surgimento do método científico. Sua relação com os territórios vai além da exploração de recursos: trata-se de uma vivência de cuidado, interdependência e transmissão cultural. Hoje, esse saber ancestral encontra um novo interlocutor tecnológico a inteligência artificial (IA).

Mas há um ponto crucial nesse encontro: quando os sistemas de IA são desenhados sem levar em conta os dados, a voz e a participação das comunidades indígenas, o resultado pode reforçar exclusões históricas. Para que a tecnologia cumpra seu papel de aliada na luta contra a crise climática, ela precisa ser construída em diálogo com quem sempre esteve na linha de frente da preservação da vida.
Foi com essa perspectiva que conversamos com WarīN K. Flores, especialista indígena em IA, membro das nações Kara e Kichwa Runa nos Andes e na Amazônia de Chinchay Zuyu, no Equador, e fundador do Kinray Hub. Flores atua entre os Estados Unidos e a América Latina, conduzindo projetos de soberania digital, governança de dados, agroecossistemas de herança cultural e manejo sustentável de florestas, incluindo iniciativas como um projeto REDD+ no Panamá.
Por que os povos indígenas são vitais para a conservação
Flores explica que os povos indígenas fornecem o que chama de “ground truthing” – a verdade prática e vivida em relação às florestas. São eles que conhecem cada detalhe, seja em áreas intocadas, degradadas ou em processo de restauração. Para além dos indicadores econômicos, entendem o valor espiritual, cultural e ecológico da floresta. Por isso, não são apenas detentores de direitos, mas coproprietários morais e práticos de qualquer iniciativa de conservação.
O especialista destaca ainda que o saber indígena não depende de diplomas ou títulos acadêmicos. É um conhecimento transmitido de geração em geração, moldado pelo convívio constante com a terra. Essa cosmovisão, que integra natureza, cultura e humanidade em um todo inseparável, é um recurso insubstituível para o desenho de políticas ambientais.
A contribuição da inteligência artificial
Segundo Flores, quando a IA é orientada pela inteligência ancestral, pode se transformar em ferramenta de precisão para apoiar comunidades específicas. Isso significa utilizar dados coletados e validados pelos próprios povos indígenas para que os sistemas consigam prever secas, recomendar práticas agrícolas sustentáveis ou orientar a gestão territorial.
No Kinray Hub, essa ideia se materializa em práticas de soberania digital e licenciamento de dados, permitindo que comunidades indígenas sejam não apenas fornecedoras de informações, mas também gestoras de seu ciclo de vida – da coleta ao uso, até a retirada dos dados. Isso rompe com a lógica de colonização digital e promove uma governança própria sobre a inteligência artificial.

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Os riscos de uma IA sem participação indígena
No entanto, quando a IA é desenvolvida sem essa participação, os riscos são altos. Flores alerta para usos perversos, como o mapeamento de áreas para mineração, bioprospecção sem consentimento ou criação de parques nacionais que expulsam comunidades de suas terras. Nesse cenário, a tecnologia se transforma em arma de biopirataria, militarização e perda de direitos.
Essa ameaça se soma a um problema recorrente: a criminalização de lideranças indígenas, a exclusão em negociações internacionais e a ausência de apoio financeiro e jurídico para que possam participar de processos de tomada de decisão. Sem corrigir essas desigualdades, falar em “inclusão” torna-se vazio.
Caminhos para superar os desafios
Para Flores, é preciso articular dois tipos de conhecimento: o acadêmico-científico e os sistemas indígenas. Hoje, essa integração falha porque o segundo raramente é reconhecido como legítimo. É necessário criar sistemas de pesquisa que respeitem e valorizem os dados indígenas, incorporando-os como parte essencial das soluções globais.
Outro ponto é garantir recursos para que representantes indígenas participem efetivamente de negociações, desde as etapas preparatórias até a implementação. Isso inclui assistência jurídica e financiamento adequado. Somente assim é possível colocar as comunidades no centro de iniciativas como REDD+, créditos de carbono e projetos de restauração florestal.
Um futuro de biotecnologia indígena
Apesar dos riscos, Flores vê na IA uma oportunidade única. Com ela, comunidades podem criar licenças de curadoria de dados e, assim, participar diretamente da economia digital. Também podem treinar sistemas de IA com seus próprios conjuntos de dados, orientando descobertas bioculturais, de enzimas que degradam plásticos a novos compostos naturais de valor econômico e ambiental.
No laboratório BioKulture Systems, do Kinray Hub, essa visão já ganha corpo. Ali, agricultores da região andina e amazônica trabalham com ciência descentralizada, genética comunitária e alfabetização digital, projetando uma transição justa e enraizada no território.
Flores acredita que esse caminho pode inaugurar uma nova era de biotecnologia indígena, capaz de unir inovação tecnológica e ética, fortalecendo uma bioeconomia circular que respeita a diversidade cultural e ambiental.












































