Antártica Sem Gelo? Pesquisa Revela Zonas Livres e Ecossistemas Escondidos


No extremo sul do planeta, onde o vento corta como lâmina e a paisagem parece suspensa no tempo, um novo olhar científico começa a revelar nuances antes invisíveis da Antártica. Um mapeamento inédito produzido pelo MapBiomas Antártica quantificou pela primeira vez a extensão das áreas livres de gelo e a presença de vegetação no continente que concentra a maior reserva de água doce da Terra. Embora a Antártica seja quase inteiramente branca, menos de 1% de sua superfície escapa da cobertura glacial. É nesse fragmento ínfimo — cerca de 2,4 milhões de hectares — que pulsa a vida terrestre disponível nos breves meses de verão. Desse total, apenas 107 mil hectares apresentam alguma forma de vegetação.

Ana Nascimento/Agência Brasil

A iniciativa científica que sustentou o estudo utiliza um repertório tecnológico sofisticado: imagens de satélites cruzadas com algoritmos de machine learning, processados em alta capacidade na nuvem. A vastidão do continente e as condições extremas exigem esse tipo de abordagem. Para a coordenadora do mapeamento, a pesquisadora Eliana Fonseca, compreender a dinâmica dos ambientes antárticos é tanto uma necessidade ecológica quanto uma questão estratégica. Se a Antártica influencia o clima global, acompanhar a saúde de seus ecossistemas é também observar a saúde climática do planeta.

Segundo Fonseca, o mapa das áreas livres de gelo desempenha um papel vital no monitoramento da fauna, sobretudo porque muitas espécies utilizam essas superfícies expostas como berçários naturais durante o verão austral. Já o mapa de vegetação permite acompanhar a produtividade dos ecossistemas e identificar sinais de mudança ambiental. A vegetação que brota durante esse curto período de insolação é formada por musgos, algas terrestres, gramíneas e líquens que se adaptam a condições mínimas de temperatura e nutrientes. Essas espécies, discretas para quem não conhece o bioma, são fundamentais para a engrenagem ecológica local.

O estudo também utilizou indicadores de sensoriamento remoto capazes de mensurar não apenas a presença da vegetação, mas sua densidade e vitalidade. É uma forma de enxergar a Antártica para além de sua brancura predominante, reconhecendo que, mesmo em ambientes extremos, a biodiversidade encontra caminhos de persistência.

Curiosamente, ao observar a vegetação antártica, os pesquisadores identificaram similaridades com ecossistemas brasileiros. Fonseca explica que musgos, líquens e algas terrestres formam as chamadas crostas biológicas do solo, também presentes em regiões semiáridas do Brasil, como os biomas Pampa e Caatinga, onde ajudam a proteger o solo em áreas pobres em recursos ambientais. As gramíneas, por sua vez, aparecem tanto na Antártica quanto em praticamente todos os biomas brasileiros como espécies pioneiras, adaptadas a colonizar ambientes desafiadores.

estacao_comandante_ferraz_11-400x225 Antártica Sem Gelo? Pesquisa Revela Zonas Livres e Ecossistemas Escondidos
Mauricio de Almeida/ TV Brasil

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A Antártica também é vetor climático. O continente funciona como um motor atmosférico que regula temperaturas e padrões de chuva de todo o Hemisfério Sul. As frentes frias que ali se formam interagem com massas de ar quente oriundas do território brasileiro, modulando a distribuição de chuvas e influenciando diretamente os regimes climáticos tanto no Sul quanto em regiões mais distantes, como o Centro-Oeste e o Norte do país. Assim, entender a dinâmica antártica é, em alguma medida, compreender o clima brasileiro.

A pesquisa contou com imagens captadas pelos satélites Sentinel-2, posicionados na órbita polar e equipados para registrar grandes extensões de terreno com alta resolução. As imagens analisadas, produzidas entre 2017 e 2025, conseguem registrar as áreas sem gelo apenas durante o verão austral — período entre dezembro e março, quando o sol permanece no horizonte por longas horas, no fenômeno conhecido como “sol da meia-noite”. As montanhas projetam sombras intensas nesse período, o que limita parte da observação e impede que mudanças sazonais sejam completamente rastreadas.

Apesar das restrições, a coordenadora científica do MapBiomas, Júlia Shimbo, afirma que esta é apenas a primeira etapa do trabalho. Com a continuidade dos estudos e a entrada de novos grupos de pesquisa, a expectativa é ampliar o detalhamento do mapeamento, incorporar novas variáveis ambientais e aprofundar a compreensão das transformações em curso no continente gelado.

Em um momento em que a estabilidade climática global está em xeque, a Antártica, que por séculos pareceu distante das preocupações humanas, mostra-se cada vez mais como peça central na compreensão e no enfrentamento da crise do clima. O mapeamento recém-lançado revela, sobretudo, que mesmo a menor porção de terra exposta no lugar mais frio da Terra guarda informações essenciais para o futuro do planeta.