O acidente vascular cerebral isquêmico é uma das principais urgências médicas em todo o mundo e o motivo de uma nova iniciativa de pesquisa no Brasil que alia genética e medicina de precisão. Um esforço nacional coordenado pelo Hospital Moinhos de Vento em parceria com diversos centros de referência começou a mapear o perfil genético de pacientes que sofreram AVC para entender como variações no genoma contribuiriam para o risco da doença e a resposta aos tratamentos.

Batizado de Projeto Ártemis-Brasil, o estudo recebeu financiamento do Ministério da Saúde por meio do Programa de Apoio ao Desenvolvimento Institucional do Sistema Único de Saúde (Proadi-SUS), ferramenta que apoia pesquisas de relevância para ampliar capacidades diagnósticas e terapêuticas dentro do próprio SUS. A ambição é lançar, a partir desses dados, bases sólidas para a medicina de precisão no cuidado ao AVC e às condições que predisõem a esse tipo de acidente.
Genética e medicina de precisão: mais do que prever, personalizar o cuidado
O AVC isquêmico ocorre quando uma artéria que irriga o cérebro é bloqueada por um trombo (trombose) ou por um êmbolo (embolia), interrompendo a chegada de oxigênio às células cerebrais. Representa cerca de 85% dos casos de AVC no Brasil, segundo dados oficiais do Ministério da Saúde, e pode deixar sequelas profundas ou levar à morte. O impacto é enorme: em 2024, mais de 85 mil pessoas morreram no Brasil em decorrência de AVC, fazendo dele a principal causa de morte e incapacidade no país.
A neurologista Ana Cláudia de Souza, investigadora principal do Ártemis-Brasil, explica que embora se conheça hoje que fatores como hipertensão arterial, diabetes, obesidade e dislipidemias elevam o risco de AVC, há um componente genético subjacente que ainda não está claro no contexto da população brasileira. “O genoma humano é como um grande livro de receitas que orienta como nosso organismo funciona”, diz ela. Ao analisar essas ‘receitas’ em pessoas que tiveram AVC e compará-las com aquelas que nunca apresentaram a doença, o estudo quer revelar padrões que indiquem predisposição, resistência ou diferentes respostas aos tratamentos.
Essa abordagem, que hoje se insere na medicina de precisão, tem potencial não apenas para identificar riscos individuais, mas também para orientar estratégias preventivas e terapêuticas com mais acerto do que o modelo atual, que ainda trata grupos amplos de pacientes de forma homogênea.

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Uma rede nacional para um problema nacional
O Ártemis-Brasil foi concebido desde o início como um estudo multicêntrico. Onze centros de referência no atendimento ao AVC, espalhados por todas as regiões do Brasil, participam da iniciativa — todos ligados ao Sistema Único de Saúde (SUS), o maior sistema público de saúde universal do mundo. A primeira pessoa já foi incluída no estudo em novembro de 2025, e a meta é atingir mil participantes até o final de 2026: 500 que sofreram AVC isquêmico e 500 que nunca tiveram a doença. Esse desenho permite comparações robustas entre os dois grupos, essenciais para identificar alterações genéticas verdadeiramente associadas à ocorrência do AVC.
O projeto também está inserido no Programa Genomas Brasil, que busca fortalecer e ampliar a representação da diversidade genética brasileira em estudos científicos. Historicamente, a maior parte das pesquisas genômicas envolve populações europeias, norte-americanas e asiáticas, deixando lacunas quando se trata da genética latino-americana e, em particular, da miscigenação única do Brasil. Ao gerar uma base de dados nacional, o Ártemis pode não só beneficiar pacientes brasileiros como também colocar o país entre as nações que lideram esse tipo de pesquisa para doenças cerebrovasculares.
Implicações clínicas e sociais do estudo
O impacto do AVC vai muito além da emergência médica. A doença é uma das principais causas de incapacidade permanente, levando muitas vezes à perda da capacidade de falar, caminhar ou realizar atividades diárias básicas. Isso impõe uma carga enorme para o paciente, suas famílias e o próprio sistema de saúde. Dados da Rede Brasil AVC mostram que, em 2024, o país registrou mais de 85 mil mortes por AVC, número próximo aos anos anteriores e que ilustra a persistência do problema.
Nos últimos 20 anos, o tratamento de AVC no Brasil evoluiu significativamente, especialmente com a incorporação de terapias como a trombólise e a trombectomia mecânica — um procedimento que remove coágulos cerebrais com cateterismo especializado. Essas técnicas, embora disponíveis em centros de alta complexidade, ainda não estão uniformemente distribuídas pelo país, deixando lacunas importantes no Norte e no Nordeste. O Ártemis-Brasil reforça a necessidade de políticas que ampliem o acesso não só aos tratamentos agudos, mas também a abordagens preventivas baseadas em riscos individuais.
A expectativa dos pesquisadores é que, ao final do estudo, os dados genéticos associem padrões específicos a perfis de risco, resposta a drogas e até a recomendações personalizadas de estilo de vida, como dietas, exercícios e estratégias de prevenção de segundo AVC.
Do Brasil para o mundo
Além de suas implicações nacionais, o estudo pode ter impacto internacional. A médica coordenadora defende que, uma vez concluído, o Ártemis-Brasil pode servir de modelo para outras nações da América Latina com perfis genéticos e epidemiológicos semelhantes. Isso poderia gerar uma rede de pesquisa colaborativa que fortaleça o conhecimento sobre a relação entre genética e doenças cerebrovasculares em populações diversas.
Outro aspecto relevante do projeto é a capacitação de equipes do SUS em genética, aconselhamento genético e medicina de precisão, ampliando o conhecimento técnico nos serviços públicos e preparando o sistema para novas abordagens diagnósticas e terapêuticas que vêm emergindo globalmente.
Ao cruzar genética, clínica e políticas públicas, o projeto Ártemis-Brasil propõe não apenas entender o AVC em sua complexidade, mas também transformar esse conhecimento em benefícios concretos para pacientes, profissionais de saúde e gestores públicos.






































