Às margens do Rio Negro, em São Gabriel da Cachoeira, extremo noroeste da Amazônia, nasceu uma aliança inédita em defesa das crianças, adolescentes e jovens indígenas. Ali, onde nove em cada dez habitantes pertencem a 23 povos diferentes, foi lançado o projeto “Proteção Integral e Promoção dos Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens Indígenas na Amazônia Legal”. A iniciativa é liderada pelo UNICEF e reúne outras seis agências do sistema ONU — UNESCO, UNFPA, ACNUR, OIT, OIM e OPAS/OMS — em parceria com organizações indígenas, governos locais e nacionais. O financiamento vem do Fundo Brasil-ONU para o Desenvolvimento Sustentável da Amazônia, criado para apoiar soluções inclusivas na região.

A escolha de São Gabriel da Cachoeira não foi casual. Considerada a cidade mais indígena do país, o município é também território de resistência cultural e guardião de saberes ancestrais. Entre feiras de farinha, artesanato grafado com histórias antigas e celebrações que pintam as ruas de cores vivas, o cotidiano revela a força da diversidade. Nesse cenário, a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN) abriu sua Casa de Saberes Indígenas, transformada em palco de três dias de diálogo intenso.
Vozes que moldam o futuro
De 20 a 22 de agosto, o encontro “Diálogos Fundo Brasil-ONU no Alto Rio Negro” reuniu parteiras, jovens comunicadores, artesãos e lideranças de seis povos (Baré, Baniwa, Kokama, Ticuna, Tukano e Yanomami). Cada fala carregava urgências e propostas.
As jovens da Rede Wayuri, por exemplo, mostraram como a comunicação pode ser uma ferramenta de resistência. “Com nossas câmeras e microfones, ajudamos a manter vivas as nossas línguas e histórias”, afirmou Jucimery Garcia, coordenadora do Departamento de Adolescentes e Jovens Indígenas do Rio Negro.
As parteiras, por sua vez, lembraram que sua missão vai além do nascimento. “A parteira não é apenas quem ajuda a nascer. É quem segura a vida junto da comunidade”, disse uma delas, arrancando aplausos. Já as lideranças reforçaram a necessidade de manter a escuta ativa, pedindo que as vozes indígenas não sejam ouvidas apenas em eventos pontuais, mas em cada etapa do projeto.
A emoção tomou conta do espaço quando Odimara Tukano explicou o significado dos chamados Espaços Seguros: “Espaço seguro não é só um lugar físico. É quando uma criança ou jovem pode sentir confiança em alguém da comunidade. Nós, como mulheres e lideranças, precisamos ser esse porto seguro.”

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Do diálogo às ações concretas
O projeto avança em seis frentes: saúde, educação, proteção, governança, juventude e biodiversidade. As primeiras medidas incluem capacitação de agentes indígenas de saúde e parteiras, fortalecimento da rede de proteção de crianças e adolescentes, e implementação da estratégia de Atenção Integrada às Doenças Prevalentes na Infância (AIDPI).
Para Youssouf Abdel-Jelil, representante do UNICEF no Brasil à época, o encontro marcou o início de um processo de construção coletiva. “Essa semana abrimos um espaço de conversa fundamental, com rodas de diálogo em que os próprios povos indígenas compartilharam suas necessidades e prioridades. Esse momento reforça nosso compromisso de seguir ouvindo, aprendendo e construindo juntos”, destacou.
Um marco para a Amazônia Legal
O projeto não se limita a São Gabriel da Cachoeira. Ele se expandirá para outros territórios prioritários nos seis estados da Amazônia Legal, buscando reduzir desigualdades e ampliar o acesso a direitos. Mais do que políticas setoriais, a iniciativa se propõe a costurar uma rede de proteção integral, onde saberes tradicionais e políticas públicas caminhem juntos.
O Fundo Brasil-ONU foi criado justamente para viabilizar esse tipo de projeto, em aliança entre o Governo Federal, o Consórcio Interestadual da Amazônia Legal e o Sistema das Nações Unidas. Seu objetivo é mobilizar recursos e criar alternativas econômicas inclusivas e sustentáveis para a região. O primeiro aporte veio do Canadá, com 13 milhões de dólares canadenses.
Na chamada “Cabeça do Cachorro”, região estratégica da fronteira brasileira com Colômbia e Venezuela, o lançamento ecoa como símbolo. Trata-se de reconhecer que a proteção das crianças indígenas depende de fortalecer culturas, idiomas e modos de vida. A iniciativa mostra que, no coração da floresta, pode estar também o coração de um novo pacto de futuro: aquele que garante que as novas gerações indígenas cresçam com direitos, dignidade e oportunidades.










































