Em um cenário marcado por secas, enchentes e ondas de calor que ameaçam a vida urbana, as cidades emergem como protagonistas na construção de resiliência. A alimentação — o que comemos, como produzimos, distribuímos e consumimos nossos alimentos — assume centralidade nessa tarefa, sendo ao mesmo tempo vulnerável aos choques climáticos e poderosa ferramenta de transformação.

Os sistemas alimentares têm papel decisivo no contexto das mudanças climáticas: são responsáveis por mais de um terço das emissões globais de gases de efeito estufa, e no Brasil, a agropecuária e o uso da terra lideram entre as fontes. Ao mesmo tempo, esses sistemas se fragilizam rapidamente sob o impacto de eventos extremos: secas cortam colheitas, inundações isolam cadeias logísticas, e a inflação dos alimentos atinge com mais força as periferias urbanas.
Diante dessa realidade, estratégias que nasçam localmente, com ritmo mais rápido que as políticas nacionais esmagadoramente centralizadas, ganham relevância. Hortas urbanas, cozinhas comunitárias, circuitos curtos de comercialização — todas essas práticas, bem conhecidas em tempos de crise, assumem um papel duplo: reduzem emissões de transporte, reforçam soberania alimentar e fortalecem a segurança alimentar. Nesse contexto, políticas urbanas de alimentação articuladas à agenda climática não são meramente desejáveis — são fundamentais para construir sistemas com capacidade de prevenir, antecipar, absorver, adaptar e transformar diante de choques, conforme diretrizes da FAO para sistemas alimentares urbano-regionais (CRFS).
Alguns municípios brasileiros já mostram que isso é possível. Em Porto Alegre (RS), por exemplo, durante as enchentes de 2024 que deixaram bairros ilhados por dias, as redes de cozinhas solidárias integradas aos Pontos Populares de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (PPSSAN) atuaram como pontos de apoio nutricional, logístico e emocional. Uma das unidades chegou a preparar mais de 117 mil refeições em poucas semanas — com insumos da agricultura familiar e da solidariedade popular. A prefeitura e o governo estadual incorporaram essa atuação ao escopo da política pública municipal.
Em Belo Horizonte (MG), a política consolidada de Segurança Alimentar e Nutricional já incorpora hortas urbanas, feiras agroecológicas, captação de água da chuva e restaurantes populares — e, mais recentemente, o tema das mudanças climáticas foi inserido explicitamente no plano municipal de alimentação.
No Recife (PE), a aposta envolve agroecologia urbana, alimentação escolar baseada em produtos frescos de origem local e a criação de uma Secretaria Executiva de Agricultura Urbana que articula plantio urbano, reaproveitamento de resíduos orgânicos e captação hídrica — reduzindo emissões de transporte e reforçando a segurança nas periferias vulneráveis ao clima.

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Por fim, em Santarém (PA), todas as escolas municipais são abastecidas por produtos frescos da agricultura familiar. A secretaria municipal de educação organiza os cardápios em diálogo com nutricionistas e coordena a logística em três regiões distintas — urbana, planalto e ribeirinha (acessada por via fluvial). O modelo encurta cadeias de abastecimento, valoriza a produção local e reforça a adaptação climática.
Esses casos evidenciam que fortalecer sistemas alimentares locais não é apenas uma questão de garantir comida no prato — trata-se de cuidar do solo, da água, da biodiversidade, da memória alimentar, do território, das relações. Mas ainda persistem barreiras: falta de coordenação entre políticas nacionais e locais; baixa participação de atores comunitários; escassez de financiamento para infraestrutura alimentar; ausência de indicadores claros para medir transformação e resiliência. O relatório da FAO avisa: muito do que se faz por “absorção” de choque permanece reativo, e os sistemas retornam ao funcionamento anterior, perdendo a chance de transformação profunda.
É urgente que cidades deixem de ver-se apenas como receptoras de impactos e passem a agir como laboratórios vivos de justiça climática e alimentar. A alimentação urbana, nesse sentido, é um campo estratégico para a ação: modular cadeias, encurtar distâncias, envolver comunidades, reconstruir práticas alimentares saudáveis e locais. A importância da “pequena área” — o bairro, a horta comunitária, o restaurante popular, a feira local — nunca foi tão alta. Porque, se não for nas pequenas escalas, a resiliência não se sustenta. E se não for localmente enraizada, a sustentabilidade não vira transformação.








































