Ao cruzar a fronteira entre Bonfim (RR) e Lethem, na Guiana, o aviso em um outdoor chama a atenção: o tráfico humano é crime. O alerta, exposto em meio a um cenário aparentemente pacato e movimentado por comerciantes, antecipa uma realidade sombria.

Lethem: o retrato cruel por trás da fronteira
A apenas 132 km da capital Boa Vista, Lethem tornou-se um dos principais destinos de jovens aliciadas para exploração sexual, especialmente em garimpos frequentados por brasileiros e guianenses.

Segundo relatos obtidos ao longo de uma semana de apuração, veículos transportam meninas da capital roraimense até Lethem sem qualquer fiscalização efetiva. Na Guiana, a prostituição é oficialmente proibida, mas, na prática, bares próximos a áreas de mineração funcionam como vitrines de exploração sexual.
Recrutamento silencioso e promessas falsas
A base do aliciamento está na vulnerabilidade. Traficantes miram adolescentes pobres em escolas, periferias e aldeias indígenas, oferecendo propostas de trabalho com alto rendimento. As falsas promessas, normalmente associadas ao posto de cozinheira em garimpo, considerado de prestígio, escondem a real intenção: submeter essas jovens a uma rotina de exploração sexual em ambientes precários.
A maioria só percebe o golpe ao chegar ao destino, quando têm documentos e celulares confiscados e são isoladas de suas famílias. Muitas sequer se reconhecem como vítimas de tráfico humano. Outras, mesmo percebendo a situação, se calam por medo da retaliação das facções que dominam os garimpos ilegais.
Uiramutã e Bonfim: pobreza que alimenta o crime
O cenário é agravado pela extrema pobreza da região. Uiramutã, por exemplo, tem o pior Índice de Progresso Social do Brasil em 2024. Das 20 piores cidades no ranking nacional, quatro estão em Roraima, todas na Amazônia.
A ausência de políticas públicas eficazes torna esses municípios ainda mais vulneráveis à ação de redes criminosas. Famílias, muitas vezes, colaboram com o ciclo ao normalizar o desaparecimento das jovens sob a crença de que elas estão empregadas, mesmo diante de cartazes colados em postes em busca de notícias.

Resistência, medo e silêncio
Maria do Socorro dos Santos, coordenadora de ações contra o tráfico humano em Roraima, lamenta que o medo paralise as denúncias. Mesmo com ações pedagógicas em dezenas de escolas, o telefone criado para denúncias no Projeto Prevenção sem Fronteiras nunca foi acionado.
Santos acredita que a educação é o caminho, mas reconhece: falta uma estrutura pública forte e articulada. A ausência de respostas por parte da Polícia Federal às solicitações da reportagem reforça a sensação de impunidade.
Narcogarimpo e devastação ambiental
O tráfico humano está diretamente associado à devastação ambiental. Segundo o IPAM, existem mais de 80 mil pontos de garimpo ilegal abertos na Amazônia. Em Roraima, a mineração cresceu 40 vezes entre 1985 e 2023. O impacto vai além da violência contra pessoas: rios são contaminados com mercúrio, e comunidades inteiras perdem o acesso à água potável e à pesca.
Essa destruição se intensificou após a crise humanitária na Terra Indígena Yanomami. A região foi invadida por mais de 20 mil garimpeiros entre 1985 e 2022. Em 2023, operações federais buscaram reverter a situação, o que provocou a migração dos criminosos para áreas como a fronteira com a Guiana.

Garimpo, status e exploração
Apesar da promessa de ascensão ao cargo de cozinheira, posição respeitada e com pagamento fixo, muitas garotas acabam sendo direcionadas à prostituição. Cozinheiras, de fato, são protegidas, mas servem de isca para convencer jovens a aceitarem os convites de trabalho. Em currutelas (espaços sociais dos garimpos), as vítimas trabalham sob exploração intensa, recebendo em gramas de ouro e frequentemente endividadas desde a chegada.
A pesquisadora Márcia Oliveira relata que os relatos ouvidos indicam condições análogas à escravidão. A rotina extenuante, o isolamento, os abusos e o medo compõem o cotidiano dessas mulheres.
Uma rede bem articulada
O tráfico humano em Roraima é apenas uma peça de um quebra-cabeça maior que envolve narcotráfico, mineração ilegal e degradação ambiental. Segundo pesquisadores da UFRR, a rota do ouro que atravessa o norte da Amazônia é também uma rota do sexo. O crescimento do preço do ouro impulsionou ainda mais o garimpo, e com ele, a violência.
A professora Francilene Rodrigues compara o modelo atual ao da Colômbia, onde garimpeiros pagavam às Farc por proteção. Já o sociólogo Rodrigo Chagas acredita que a crise venezuelana e o incentivo à mineração durante o governo Bolsonaro agravaram esse cenário.
Enquanto isso, jovens seguem desaparecendo, famílias continuam em silêncio e as fronteiras da Amazônia permanecem escancaradas para o tráfico humano.









































