Em julho de 1980, uma reportagem da Agência Estado ecoava um alerta da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência: até 2010, a Amazônia seria apenas um deserto de areia. Quase meio século depois, a profecia não se concretizou. A floresta não virou pó, mas enfrenta uma realidade silenciosa e corrosiva: a fome, a doença e a pobreza que crescem sem a mesma visibilidade queimada e desmatamento despertam no debate público.

A Amazônia não é feita de areia, mas de carências. Sua agricultura, enfraquecida, marcada pela falta de regularização fundiária e por políticas que, em vez de fortalecer, muitas vezes criminalizam o pequeno produtor, não consegue garantir comida suficiente para a própria população. O paradoxo é cruel: enquanto o bioma é um ícone global da biodiversidade, milhões de pessoas que vivem nele não têm acesso regular a alimentos básicos.
Boa parte do que se consome no Norte brasileiro chega de longe. Caminhões vindos do Sul, Sudeste e Centro-Oeste carregam feijão, arroz, frango, ovos, frutas e laticínios para abastecer a região. Mas a falta de estradas, portos e logística encarece tudo. O resultado é um “imposto ambiental” que o povo amazônico paga em cada prato: quem tem dinheiro, gasta caro; quem não tem, come mal e passa fome.
Um estudo recente da Embrapa Territorial, em fase de conclusão, traz números contundentes sobre a insegurança alimentar. A pesquisa mapeou a produção agrícola nos municípios amazônicos, considerando dados anuais do IBGE.
No caso do arroz, entre 2021 e 2023, o Brasil produziu em média 11 milhões de toneladas, o que garante 51 quilos por habitante ao ano. Já no bioma amazônico, a produção foi de apenas 663 mil toneladas, ou 22 quilos por pessoa – menos da metade da média nacional. O Pará, anfitrião da COP30, amarga um número ainda mais baixo: 13,5 quilos por habitante ao ano, pouco mais de 1 quilo por mês.
O feijão segue a mesma lógica. Enquanto a média brasileira chega a 10 quilos por pessoa ao ano, na Amazônia não passa de 6,5 quilos – algo como uma colher de sopa por dia. No Pará, a situação é ainda mais dramática: 2,4 quilos por pessoa ao ano, o equivalente a 6 gramas por dia.
A mandioca é uma exceção parcial. O bioma responde por 34% da produção nacional, com disponibilidade de 210 quilos por pessoa ao ano. Convertida em farinha, representa cerca de 60 quilos anuais por habitante. A banana, por sua vez, aparece em volume moderado: 30 quilos por pessoa ao ano.
Mesmo assim, somando arroz, feijão, mandioca e banana, a oferta alimentar na Amazônia é de apenas 118 quilos por habitante ao ano – menos da metade do mínimo calórico considerado adequado, de 250 quilos. Ou seja: a floresta verde ainda depende da agricultura distante para sobreviver.

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A Amazônia é um cenário de contradições
A contradição se acentua ao observar o Valor da Produção Agrícola do bioma: 15% do total nacional. No entanto, 80% desse valor vem da tríade soja, milho e algodão – commodities voltadas ao mercado global, concentradas em municípios do norte do Mato Grosso. Enquanto isso, produtos que poderiam abastecer as famílias locais – arroz, feijão, frutas, mandioca – ocupam espaço reduzido e recebem pouca atenção.
A consequência é que, em estados amazônicos, a insegurança alimentar chega a 40% dos domicílios, contra uma média nacional inferior a 28%. No Amazonas, mais da metade da população enfrenta algum grau de fome. Não por acaso, as dez cidades com pior qualidade de vida no Brasil estão na Amazônia – sete delas no Pará, sede da COP30.
Os problemas não param na alimentação. A região concentra os piores índices de saneamento básico do país: 58% das cidades amazônicas estão nessa lista. Santarém lidera o ranking negativo, seguida por Belém e Ananindeua. A precariedade urbana se soma a baixos índices de renda, violência, ausência de infraestrutura e serviços de saúde insuficientes. O resultado é uma população exposta a doenças, miséria e crime organizado.
Enquanto isso, a política nacional para a Amazônia segue fragmentada. Falta um projeto estratégico de longo prazo. Falta coordenação supraministerial. Falta prioridade real. E sobra retórica ambiental usada como bandeira em conferências internacionais, financiada por fundos como o Fundo Amazônia, sem necessariamente traduzir-se em melhorias concretas para quem vive no território.
Às vésperas da COP30, é legítima a pergunta: qual espaço terá a segurança alimentar da população amazônica nos debates oficiais? Tudo indica que pouca ou nenhuma. O risco é que a floresta continue sendo apresentada ao mundo como patrimônio a ser preservado, mas sem que sua gente tenha direito a algo tão elementar quanto arroz, feijão e dignidade no prato.









































