Durante as intensas negociações climáticas de Bonn (SB62 – de 16 a 26 de junho), a organização internacional ICLEI — Local Governments for Sustainability, promoveu um marco inédito: a primeira edição do Annual Review on Local and Subnational Action on the Rio Conventions. Esse evento, integrado aos Daring Cities 2025 Bonn Dialogues, tornou-se um espaço emblemático em que vozes municipais e regionais passaram a refletir e colaborar para moldar o futuro global dos três principais acordos assinados no megaevento da Terra, a Eco-92, no Rio de Janeiro.


Três convenções, um ponto de partida em comum
As chamadas “Convenções do Rio” – a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCCC), a Convenção sobre Diversidade Biológica (CBD) e a Convenção das Nações Unidas de Combate à Desertificação (UNCCD) – nasceram há mais de trinta anos, na ECO-92. Seu objetivo converge para um mesmo propósito: preservar o planeta enquanto se assegura esse desenvolvimento sustentável. Elas têm percursos diversos:
- A UNFCCC passou da mitigação ao reforço da adaptação e resiliência das comunidades vulneráveis;
- A CBD expandiu o enfoque de proteção de espécies para uma relação mais harmônica entre humanos e natureza;
- A UNCCD elevou o debate sobre desertificação e degradação de terras a prioridades de governança global.
Nos últimos anos, diante de crises climáticas, ecológicas e hídricas, cresceu a pressão por abordagens integradas e interconectadas. Iniciativas como o Bern Process (CBD), a Riyadh Action Agenda (UNCCD) e novos mecanismos via a Assembleia do ONU-Habitat são sinais de que a convergência pode superar a dispersão institucional.
Governos locais no centro da ação multinível
Desde que a Constituinte dos Governos Locais e Autoridades Municipais (LGMA) foi reconhecida pela UNFCCC em 1995, tornou-se um protagonista no cenário climático global. Coordenada hoje pelo ICLEI, essa articulação pressiona por maior autonomia, representatividade e participação das esferas locais e regionais em processos internacionais — não apenas em financiamentos, mas também em definição de estratégias climáticas.
Como observa Yunus Arikan, diretor de Advocacy Global do ICLEI e principal articulador da LGMA:
“O Protocolo de Quioto oferecia pouco espaço para o protagonismo local. Já o Acordo de Paris (2015) marcou uma virada, ao reconhecer formalmente o papel das cidades e dos governos regionais no cumprimento de metas nacionais e globais.”
A partir de então, ações multilaterais — como os Diálogos Talanoa e a iniciativa CHAMP — deram base para uma participação mais efetiva e articulada, tanto no combate ao clima, como na preservação da biodiversidade e na defesa do solo.
O primeiro Annual Review: da reflexão à convergência
O encontro inaugural do Annual Review foi uma oportunidade inédita para que governos locais e regionais apresentassem suas experiências, identificassem desafios comuns e sinalizassem práticas replicáveis. O encontro destacou que as operações em nível subnacional já dialogam com as três convenções do Rio — não simplesmente de modo fragmentado, mas buscando sinergias concretas.
Rachel Lévesque, conselheira sênior em Clima e Meio Ambiente do governo de Quebec, Canadá, sintetizou assim:
“Já estamos sentindo os impactos do clima, da perda de biodiversidade e da degradação do solo — a convergência entre as convenções nos permitiria alinhar mensagens, ganhar legibilidade política e atrair os recursos que faltam.”
Governos locais possuem ainda um diferencial: continuidade política e capacidade técnica para integrar abordagens — à diferença de políticas nacionais por vezes voláteis — o que os torna terreno fértil para implementar ações estruturadas e interligadas.
O espírito do mutirão brasileiro em prática
A Presidência do Brasil para a COP30 escolheu trazer ao debate o conceito de mutirão — esforço coletivo e solidário em prol do interesse comum. A convergência entre clima, biodiversidade e terra sustenta essa ideia. Os três pilares são vistos não como agendas isoladas, mas como interdependentes. A #COP30 em Belém pretende reforçar essa filosofia, transformando retórica em ações compartilhadas.

Exemplos inspiradores no plano local
Quebec: ali, autoridades municipais enfrentam, simultaneamente, declínio da biodiversidade, eventos climáticos extremos e pressão por mudanças econômicas. Como conta Lévesque,
“Temos feito avanços, mas os desafios são crescentes. A integração das três convenções nos ajudaria a consolidar políticas coerentes e angariar os investimentos necessários.”
Muğla (Turquia): município no Mediterrâneo — uma das regiões mais vulneráveis às mudanças climáticas pelo IPCC —, Muğla buscou diálogo público sobre conflitos entre agricultura, turismo e produção energética. Em seu Town Hall COP, moradores, universidades e setor privado criaram a “Declaração de Muğla”:
- meta de redução de 40% nas emissões até 2030,
- proteção de sumidouros de carbono,
- apoio a energias renováveis, e
- conferências anuais abertas para manter a confidencialidade e inclusão.
Cihan Dündar, líder de clima e resíduos da prefeitura, explicou que
“o formato Town Hall permitiu um compromisso coletivo que associa mitigação, ecologia e resiliência do solo.”
Avanços concretos no âmbito multilateral
As discussões do Annual Review refletiram também movimentos significativos no nível global:
- CBD/Bern Process: alinhamento entre convenções ambientais e integração de relatórios e sistemas de dados sob a estrutura de Kunming-Montreal.
- UNCCD/Riyadh Action Agenda: reforço da voz local na restauração de terras e na prevenção da desertificação, mostrando que cidades e regiões são agentes ativos, não apenas beneficiários.
- UNFCCC: agora respaldada pelo parágrafo 161 da decisão de Dubai (COP28), a mudança é possível. O documento insta por ações integradas e multissetoriais, abrindo caminho para combinar o NDC 3.0 e o Global Goal on Adaptation.
Da articulação aos resultados
Felix Dodds, professor da Universidade da Carolina do Norte e especialista em governança global, sintetizou:
“Mudanças grandes são duras em nosso mundo fragmentado. Mas pequenos saltos, bem planejados e conectados às bases, podem criar um terreno transformador.”
Governos municipais que agora planejam suas NDC 3.0 ou aguardam a chamada da COP30 são convidados a combinar clima, solo e natureza em suas estratégias locais — afinal, esses temas não se separam na prática. E se não há separação no problema, tampouco deveria haver na solução.
O impacto das discussões de Bonn rumo a Belém
O que foi discutido em Bonn e nas sessões paralelas de Daring Cities não ficará restrito às salas fechadas. Afinal, é a partir dessa convergência regional-global que se reforça a governança multinível — uma premissa central para uma COP30 inclusiva, participativa e efetiva. Desde o evento paralelo do ICLEI/ONU-Habitat/Universidade da Dinamarca do Sul — batizado de Urban COP30 and Beyond — até os painéis urbanos oficiais, o propósito é claro: mostrar ao público que cidades são protagonistas, não apenas palco.
O próximo capítulo de um movimento global
O Annual Review inaugural mostrou que as Convenções do Rio podem ser mais eficazes quando falam a um só tempo — em vez de se dispersarem em dietas temáticas. A união de estratégias em clima, meio ambiente e solo amplia o impacto, gera sinergias orçamentárias e cria canais mais válidos para mobilizar apoio global — sobretudo para temas subnacionais.
Se há algo emblemático no espírito do mutirão brasileiro, é a certeza de que desafios planetários só serão vencidos quando forem enfrentados coletivamente e no terreno. Assim, o legado de Bonn poderá ecoar em Belém, e as decisões da COP30 — se bem ancoradas em práticas locais — gerarão consequências significativas em escala global.
A próxima etapa está lançada: usar as lições de Bonn para consolidar uma COP30 que seja, de fato, um encontro de cidades, regiões e nações — implementando convergência ambiental em prol de um desenvolvimento sustentável plural, inclusivo e de longo alcance.
Por Matteo Bizzotto – 17 de junho de 2025










































